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| Foto: Sergey Ponomarev/NYT

A estação St. Pancras International, uma maravilha da arquitetura vitoriana ressuscitada para o século 21, abriu 10 anos atrás como a personificação de uma noção particular: a de que o Reino Unido é parte de algo maior que si mesmo e que pertencer a uma organização de nações é tão fácil e natural quanto entrar em um trem.

No começo, foi um tanto chocante e emocionante poder pegar um Eurostar em uma plataforma em Londres, passar sob o Canal da Mancha, cortar o interior da França e, menos de três horas depois, descer na Gare du Nord, em Paris. Embarcar nesse trem era se maravilhar com a ideia de que essas capitais – Londres, tão prosaica e direta, Paris tão romântica e misteriosa, ambas com sua longa história de rivalidade e discórdia – faziam parte de um mesmo grande empreendimento.

O Eurostar também simbolizou uma época na qual Londres parecia estar inevitavelmente correndo em direção à Europa. Pelo menos, essa era a ideia até agora, com o início do processo conhecido como Brexit. Os trens ainda estão funcionando, mas a era que criou a Londres moderna parece ter acabado.

Futuro incerto

“Fizemos uma declaração horrível para o resto do mundo, e isso é muito triste. Deveríamos estar juntos em vez de nos afastarmos”, disse Martin Eden, editor que esperava para pegar o Eurostar para Paris, um dia desses, para comemorar seu aniversário de 43 anos sobre a Europa.

Encontrei Eden quando passeava por St. Pancras no momento em que o Reino Unido oficialmente entrou com o pedido de divórcio da União Europeia. Era hora de almoço no dia 29 de março, o Brexit Day, como pode ser chamado, quando o reino entregou uma carta a Bruxelas iniciando dois anos de negociações sobre as regras da saída.

Mas agora que os britânicos tentam dizer adeus à sua distante parceira de 44 anos, Londres enfrenta um desafio diferente: como uma grande cidade global, cujos habitantes votaram contra o Brexit no referendo do último verão, deve se ajustar a um futuro incerto, regido por princípios que parecem a antítese de seu ser. O Brexit separou o Reino Unido da Europa, mas também dividiu a própria Grã-Bretanha, com Londres de um lado e a Inglaterra do outro (Escócia e Irlanda do Norte, que também votaram por ficar, são outra história).

Sensação de rejeição a Londres

Para muitas pessoas na capital, o referendo do ano passado passa uma sensação não apenas de uma rejeição à Europa, mas também aos valores incorporados por Londres, talvez a cidade mais vibrante e exuberantemente cosmopolita do mundo: valores como abertura, tolerância, internacionalismo e o sentimento de que é melhor olhar para fora do que para dentro. Enquanto uma melancolia parecia se abater sobre St. Pancras enquanto eu andava por lá recentemente, grande parte do Reino Unido estava comemorando.

Aqui estão as pessoas mais ricas e muitas das mais pobres, vivendo lado a lado em paz relativa. Londres está cheia de marcos britânicos – o Big Ben, o Palácio de Buckingham, a Catedral de St. Paul – mas também de gente de 270 nacionalidades, 8,7 milhões de habitantes ao todo.

“O Bom Imigrante”

O Brexit bagunçou essa grande experiência de tolerância. Ninguém consegue prever como a cidade vai ser em 10, 20 ou 30 anos. Se as viagens espontâneas entre a Europa e a Grã-Bretanha já não parecem tão simples, o mesmo acontece com o trânsito de pessoas, capital, empregos, negócios e línguas. Talvez o mais importante seja que já não é evidente que essas são coisas para se admirar, aqui ou em qualquer outro lugar.

“Londres é um lugar estranho no momento”, disse o escritor Nikesh Shukla, cujo livro “The Good Immigrant” é composto de ensaios de britânicos não brancos sobre um país no qual eles se sentem cada vez mais alienados. Ele agora vive em Bristol, mas cresceu em Londres e a cidade, diz ele, “parece uma versão excepcionalmente encapsulada do que a Grã-Bretanha significa para mim”.

“O governo diz que está tentando conseguir o país de volta, mas no processo está perdendo o coração do seu povo em Londres. As pessoas se sentem desconfortáveis, porque é o futuro que está em jogo. É gente que vive na cidade e que contribui para ela, que tem família, estrutura social e compromissos financeiros, cujo futuro está agora em dúvida”, disse Shukla em uma entrevista por telefone.

ONU londrina

Morei em Londres mais de 15 anos. A cidade mudou muito nesse tempo e aquela que eu deixei parecia extremamente diferente da que encontrei quando cheguei. Ela estava mais aberta, mais internacional, mais entusiasmada, mais emocionante. A comida ficou melhor, e os lugares ficam abertos até mais tarde. Meus vizinhos pareciam vir de uma ONU, as nossas diferenças, de algum modo, foram apagadas porque todos as compartilhavam.

A cidade também ficou muito mais rica, o que não necessariamente é uma coisa boa: o centro se tornou praticamente inacessível. Oligarcas russos e outros membros da elite ultrarrica do mundo cavaram as ruas para construir complexos subterrâneos repletos de piscinas e garagens nas casas em que planejam viver apenas algumas semanas por ano.

A Europa, que parecia um conceito distante, de repente estava bem ali na porta. Multidões de franceses, e depois poloneses e espanhóis e, mais tarde – e com mais controvérsia –, os romenos vieram. Quando você ia a uma galeria de arte ou ao cinema, via como a cultura britânica se beneficiava do financiamento europeu. A ascensão das companhias aéreas baratas facilitou o voo para a Europa quase tanto quanto a viagem de trem. Tony Blair, primeiro-ministro durante grande parte desse período, gostava de tirar férias em lugares como a Toscana, na Itália.

Europa “maneira”

Sua eleição como primeiro-ministro, em 1997, aliás, pôs um fim a 18 anos de governo conservador e marcou o início de uma época em que pertencer à Europa parecia algo quase “maneiro”. Falar uma língua estrangeira, de repente, e mesmo que por um curto período, parecia bem. E então, em 2012, Londres sediou os Jogos Olímpicos, anunciando a si mesma como uma cidade do mundo e provando como essa terra poliglota trabalha com suavidade e alegria quando tem uma meta e como as pessoas que viveram aqui se davam bem.

E, a despeito do sentimento antimuçulmano e anti-imigração que deu força ao voto do Brexit, temos o primeiro prefeito muçulmano de Londres, Sadiq Khan, cujos pais, um motorista de ônibus e uma costureira, saíram do Paquistão. Aqui estão financistas internacionais e playboys, eurocratas e eurotrash, além de migrantes econômicos da Espanha e de Portugal e de outros países europeus deprimidos, aglomerando-se em apartamentos minúsculos na periferia da cidade, trabalhando em cafés, construções, em hotéis.

“Em Londres nunca me sinto como um estrangeiro, porque todo mundo é de fora”, disse Paolo Martini, 32 anos, cabeleireiro que conheci em Kentish Town, que veio do Brasil e tem uma mulher polonesa e uma filha britânica (em virtude de seu nascimento). Ele vive aqui há mais de uma década; quem sabe o que o Brexit pode fazer com sua família?

Combinação perfeita

Parte do que faz Londres diferente é como tudo se combina com perfeição, as pessoas de diferentes origens, econômicas ou étnicas.

“Não somos só eu e você, ricos e pobres. Todo mundo se mistura aqui”, disse Dara Djarian, 25 anos, corretor de imóveis em Kilburn, cujos pais são da França e do Irã. Ele comparou os bairros de Londres aos banlieues mais uniformes da periferia de Paris, ocupados principalmente por imigrantes árabes.

Olhei para a Kilburn High Road da janela de seu escritório e vi o que ele queria dizer. Uma delicatessen polonesa ao lado de um restaurante italiano, em frente a um tradicional pub londrino, ao lado de um açougue halal. Havia a loja de móveis Shah, um cabeleireiro para senhoras, uma loja clássica de fish-and-chips, outra de peças para banheiro de luxo, alguns cafés chiques e o intelectual Tricycle Cinema, com uma programação que atrai descolados e cineastas.

“A única coisa que realmente não vemos muitos por aqui são os ingleses. Eles se mudaram para o interior, ou para os subúrbios”, contou Djarian.

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