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No Iêmen, o consumo de antibióticos é alto e doenças do século XIX ressurgiram com força | ESSA AHMED/
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No Iêmen, o consumo de antibióticos é alto e doenças do século XIX ressurgiram com força| Foto: ESSA AHMED/ AFP

Dois dias depois que o jovem iemenita saiu da cirurgia, os médicos sentiram o cheiro pela primeira vez. A bala que penetrara na perna do universitário de 22 anos tinha estilhaçado o osso e feito um buraco na pele. Agora, a ferida exalava um odor distinto, descrito na literatura médica como “ofensivo”. Havia fortes indícios de uma infecção, talvez com risco de vida, e o ferimento não melhorava.  

Percebendo que os antibióticos normais não estavam funcionando, os médicos do centro de traumatologia administrado pela organização Médicos Sem Fronteiras enviaram uma cultura de sangue para análise para o novo laboratório de microbiologia, o único do tipo na região. E os resultados revelaram a presença de uma bactéria, a Acinetobacter baumannii, resistente à maioria dos antibióticos padrão. Ninguém sabe como o estudante – identificado apenas pelas iniciais, A.S., para preservar sua privacidade – adquiriu a infecção, mas ela é tão comum no Iêmen que pode ter sido da própria bala ou da areia no chão onde ele caiu, segundo o Dr. Nagwan Mansoor, diretor do programa piloto de antibióticos da Médico Sem Fronteiras.  

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Os médicos começaram então a tratar o ferido com um regime de remédios especializados, raramente usados por causa dos efeitos colaterais perigosos. O jovem teve que passar por várias cirurgias, sete no total. O que normalmente seria um caso de cinco dias se tornou uma internação de três semanas, durante as quais o paciente teve que ser isolado para evitar que infectasse os outros. Nas visitas, os familiares só podiam tocá-lo se estivessem usando roupas protetoras.  

A.S. sobreviveu. "Resgatamos esse jovem das garras da morte", resumiu Mansoor. Mas ele teve sorte: a maioria dos hospitais iemenitas não tem nem a capacidade, nem os protocolos instaurados para detectar e tratar infecções resistentes; se estivesse em qualquer outro lugar, provavelmente teria perdido a perna ou morrido.  

Impacto de longo prazo

A campanha de bombardeios no Iêmen, liderada pelos sauditas, resultou em milhares de mortos e gerou um vasto número de refugiados, mas as verdadeiras consequências talvez se tornem aparentes só no futuro. Depois de anos de ataques que prejudicaram o fornecimento alimentar, destruíram a infraestrutura básica e desestabilizaram a saúde pública, o país se tornou terreno fértil para doenças resistentes a antibióticos, com resultados potencialmente catastróficos, e não só para o Iêmen.  

Quando a penicilina foi implementada em larga escala, em 1942, causou uma revolução na medicina; as infecções que costumavam matar perderam esse poder. Novidades semelhantes a seguiram, mas a ameaça do desenvolvimento de resistência por parte dos micróbios a essas drogas extraordinárias sempre foi uma preocupação, desde o início. Até recentemente, a ameaça de uma doença que resistisse às medicações era mais teórica que outra coisa, um medo generalizado gerado por alguns casos isolados.  

Só que ela é realidade no Iêmen. O conflito está adquirindo aspectos que antes só se viam em livros de história; o verdadeiro preço das campanhas militares não está nos danos imediatos causados pelas armas, mas sim no impacto de longo prazo, muito maior, das doenças que se espalham como decorrência do caos do conflito armado.

"É um fardo enorme sobre um sistema de saúde que mal tem condições de fornecer auxílio básico", lamenta a Dra. Ana Leticia Nery, coordenadora médica da Médicos Sem Fronteiras no Iêmen, há tempos o país mais pobre do Oriente Médio.

Mais de 60% dos pacientes internados no hospital da organização, em Áden, têm algum tipo de bactéria resistente a antibióticos no organismo.  

A prevalência generalizada dessas infecções quase quadruplicou a duração da internação dos pacientes no hospital de campanha para recuperação dos ferimentos de guerra. Esse tempo extra, mais os antibióticos especiais necessários para que a pessoa supere o mal causado pela bactéria, implica em menos doentes sendo tratados do que o normal, com um tratamento muito mais caro e difícil.  

Problemas semelhantes estão ocorrendo em outras regiões de conflito locais, incluindo o Iraque e a Síria, e em países com populações grandes de refugiados, como a Jordânia.

"É assustadora a prevalência da resistência aos medicamentos que vemos na região", desabafa Nery.  

Resistência medicamentosa

Em crises humanitárias, o foco é sempre no atendimento emergencial; os outros problemas geralmente são deixados de lado. A observação de casos de resistência medicamentosa é pontual, "mas parece que muita gente está morrendo por causa de infecções nos conflitos médio-orientais", afirma Susan Elden, assessora de saúde na Síria do Departamento para o Desenvolvimento Internacional britânico. Segundo ela, descobertas semelhantes às da experiência da MSF no Iêmen surgiram em pequenos estudos na Síria.

"A logística da ajuda humanitária global ainda não se adaptou à realidade das infecções resistentes das zonas de conflito."  

É também uma ameaça à segurança nacional norte-americana. Durante vários anos seguidos, as forças no Iraque e no Afeganistão caíram a níveis mínimos devido às infecções antes que as Forças Armadas começassem a abordar a questão, em 2009. As causas da resistência infecciosa no exército dos EUA eram praticamente as mesmas do que na população civil: falta de higiene, excesso de uso de antibióticos e tratamento em diversas instalações, como explica o Dr. Kent E. Kester, coronel da reserva que dirigiu o Instituto de Pesquisa Militar Walter Reed e supervisionou o programa de resistência aos medicamentos.  

A Médicos Sem Fronteiras é exceção entre as organizações de ajuda humanitária porque presta atenção à questão da resistência aos medicamentos, ainda que ela tenha surgido da necessidade.

"Os protocolos normais que usamos para antibióticos na África Subsaariana não funcionam no Iêmen e outros países em guerra no Oriente Médio por causa da alta prevalência da resistência aos medicamentos. Observamos que nossos pacientes não estão reagindo aos antibióticos comuns; não estão melhorando", diz Nery.  

Antes da guerra, o Iêmen tinha um sistema de saúde operacional, ainda que frágil; a guerra o destruiu, junto com a infraestrutura de fornecimento de água e saneamento do país. Mais de 80% das crianças pequenas não estão recebendo nem as vacinas de rotina. Quase 18 milhões de pessoas estão com fome, muitas, inclusive, em nível de inanição. De acordo com os cálculos mais modestos, dez mil civis foram mortos, com mais de 52 mil feridos, o que representa terreno fértil para a resistência à medicação.  

O consumo de antibióticos já era bem alto na região. Um estudo de 2014 concluiu que 48% da população da Arábia Saudita usa antibióticos sem receita médica; no Iêmen, esse número sobe para 78%. A Síria era grande produtora desse tipo de medicamentos, tanto para consumo interno como para exportação.  

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É uma fórmula para a catástrofe: um sistema de saúde frágil onde os antibióticos são vendidos praticamente sem restrição nem supervisão, combinado com um número excessivamente alto de feridos nos hospitais com práticas de controle de infecções e higiene precárias. No Iêmen, os médicos que lutam para dar conta do grande número de pacientes, geralmente usam antibióticos de amplo espectro até mesmo nas infecções mais simples.

"É o que cria uma outra geração de bactérias resistentes, inadvertidamente preparando o cenário para um colapso da saúde pública", explica Mansoor.  

Doenças do século XIX ressurgiram com força. O Iêmen enfrenta o surto mais agressivo de cólera jamais registrado, com mais de um milhão de pessoas afetadas, sendo mais de 250 mil crianças pequenas. A difteria voltou a atacar também.  

A Médico Sem Fronteiras, que está no Iêmen desde 1986, parece ser a única agência de seu porte monitorando a resistência às medicações na área; no ano passado, abriu um laboratório dedicado à microbiologia. Outras instituições médicas com que entrei em contato se disseram ocupadas demais para acompanhar a questão.  

Isso gera um problema de base: a falta de vigilância e procedimentos de controle infeccioso como parte da resposta humanitária, que cada vez mais é necessária em conflitos prolongados. "Onde precisamos de mais informações, é justamente onde não as temos", resume Elden.  

(*Sam Loewenberg é repórter especializado em saúde pública. Este artigo, parte da série Crise Global das Superbactérias, da Agência de Jornalismo investigativo, foi financiado com apoio do Centro de Jornalismo Europeu.)  

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