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| Foto: ISMAIL FERDOUS/NYT

Duzentos anos atrás, a primeira pandemia de cólera emergiu desses manguezais infestados de tigres. Começou em 1817, depois que a Companhia das Índias Orientais Britânica mandou milhares de trabalhadores se embrenharem nas profundezas da remota região de Sundarbans, parte do delta do Rio Ganges, para derrubar as florestas e plantar arroz. Essas águas salobras são o berço da Vibrio cholerae, uma bactéria que se agarra ao intestino das pessoas e libera uma toxina tão virulenta que o corpo despeja todos os seus fluídos no intestino para tentar expulsá-la.

A perda de água deixa as vítimas pálidas, os olhos ficam fundos, o sangue se torna negro e se aglutina nas veias. Sem eletrólitos, a batida do coração falha. As vítimas morrem de choque e falência de órgãos, algumas vezes apenas seis horas depois dos primeiros problemas abdominais.

A cólera provavelmente já infestava os nativos por ali há muito tempo; desde que escapou pela primeira vez, circundou o mundo em sete ciclos pandêmicos que mataram dezenas de milhões de pessoas. Os surtos forçaram Londres, Nova York e outras cidades a criar um vasto sistema público de esgoto, transformando a vida civil.

Hoje, a doença consegue manchetes de pânico quando chega inesperadamente a lugares como a Etiópia ou o Haiti, mas é uma ameaça contínua em quase 70 países, onde mais de um bilhão de pessoas corre risco.

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Agora, graças principalmente a esforços que começaram no local de seu surgimento, pode haver uma maneira de dominar a praga há tempos temida.

De modo pioneiro, foi usado aqui um protocolo de tratamento tão eficiente que salva 99,9 por cento de todas as vítimas. A Organização Mundial de Saúde estima que o tratamento poupou cerca de 50 milhões de vidas nas últimas quatro décadas.

Igualmente importante, depois de 35 anos de trabalho, foi que pesquisadores de Bangladesh e de outros lugares desenvolveram uma vacina efetiva para a cólera, aceita pela OMS e armazenada para epidemias como a que atingiu o Haiti, em 2010. É possível que em breve haja o suficiente para começar uma vacinação de rotina nos países em que a doença ainda é uma ameaça.

Segundo afirmou no ano passado a doutora Margaret Chan, secretária-geral da OMS, apenas a criação desse estoque – mesmo que com poucos milhões de doses – já melhora profundamente a maneira com que o mundo luta contra a cólera. “O pronto acesso à vacina tornou os países menos tentados a encobrir os surtos na tentativa de garantir o fluxo de turistas”, contou ela.

Isso deixou as respostas de emergência mais rápidas e atraiu mais fabricantes de vacinas, diminuindo os custos. “Mais vacinas de cólera foram distribuídas nos últimos dois anos do que em todos os 15 anos anteriores”, disse Chan.

Uma Revolução em Recuperação

Os avanços no tratamento se basearam principalmente em pesquisas e testes feitos no Centro Internacional para Pesquisa de Doenças Diarreicas, conhecido como ICDDR,B, em Daca.

Apesar de não ser o primeiro lugar em que as pessoas pensam quando procuram uma revolução na saúde pública, o centro é famoso entre os especialistas de doenças intestinais.

Originariamente, o ICDDR,B era chamado de Laboratório de Pesquisa de Cólera, uma instituição fundada em 1960 pelos Estados Unidos como parte de uma era de “diplomacia suave”. Os hospitais de pesquisa foram construídos em países aliados tanto para salvar as vidas locais como para agir como sentinelas de doenças que pudessem ameaçar os Estados Unidos.

A cólera, nascida nos pântanos, chegou há muito tempo em Daca. Moram na cidade mais de 15 milhões de habitantes e um terço da população vive em favelas. Em alguns lugares, canos de água feitos de borracha são perfurados por conexões ilegais que sugam o esgoto das calhas que atravessam e, pelo caminho, carregam patógenos até novas vítimas.

O Vibrio cholerae passa de pessoa para pessoa através de matéria fecal. Em 1854, o epidemiologista John Snow ficou famoso ao perceber que alguns casos se deviam a um único poço cavado perto de uma fossa, onde uma mãe havia lavado a fralda de seu bebê morto de cólera, e convenceu os oficiais a remover a manivela da bomba do poço.

Como a cólera é uma ameaça constante para centenas de milhões de pessoas que não possuem água segura para beber na China, na Índia, na Nigéria e em vários outros países, os cientistas há tempos procuram uma arma poderosa: uma vacina barata e efetiva. Agora eles têm uma.

Prevenindo a epidemia

Nos anos 1980, um cientista sueco, o doutor Jan Holmgren, inventou uma vacina oral que funcionava em 85 por cento dos casos, mas sua produção era cara e ela precisava ser bebida com um copo grande de solução amortecedora para protegê-la da acidez do estômago.

Em 1986, um cientista vietnamita, doutor Dang Duc Trach, perguntou qual era a fórmula, acreditando que poderia fazer uma versão que não precisasse de solução amortecedora. Holmgren e o doutor John D. Clemens, especialista americano em vacinas que na época era pesquisador do ICDDR,B, assim o fizeram.

“Essa não é uma vacina elegante – é apenas um monte de células mortas, uma tecnologia que está por aí desde Louis Pasteur”, afirma Clemens, que hoje é diretor executivo do ICDDR,B.

Ele e Holmgren perderam contato com Dang, principalmente por causa do isolamento do Vietnã naqueles dias. Porém, sete anos depois, Dang os avisou que havia feito uma nova versão da vacina e testado em 70 mil moradores de Hue, no centro do Vietnã, descobrindo que era efetiva em 60 por cento dos casos.

Apesar de não ser tão eficiente quanto a de Holmgren, custava apenas 25 centavos de dólar por dose. Quando um número suficiente de pessoas de uma região foi imunizado com a vacina, os surtos acabam espontaneamente.

Em 1997, o Vietnã se tornou o primeiro – e até hoje o único – país a fornecer uma vacina de cólera para seus cidadãos rotineiramente, não apenas em emergências. Os casos caíram acentuadamente, segundo uma pesquisa de 2014, e em 2003 a cólera sumiu de Hue, onde a campanha se concentrou com mais força.

Mas Dang não havia conduzido o teste clínico clássico e a fábrica de vacinas do Vietnã não cumpria os padrões da OMS, por isso as agências das Nações Unidas não foram autorizadas a comprar sua vacina.

Como nenhuma empresa farmacêutica conseguiu incentivos para pagar por testes e fábricas, sua invenção definhou no “vale da morte” – a cara diferença entre um produto que funciona em um laboratório e a versão feita em fábrica, com segurança garantida para ser aplicada em milhões.

Em 1999, Clemens procurou o que hoje é a Fundação Bill & Melinda Gates, que estava começando a ser montada.

“Eles estavam literalmente trabalhando em um porão na época. Recebi uma carta de Bill Gates. Em um tom tranquilo, dizia mais ou menos: ‘Aqui estão US$ 40 milhões. Você se importaria de me mandar um relatório de vez em quando?’”. “Mas sem isso, a vacina não teria acontecido”, continua ele.

Com esse dinheiro, Clemens reformulou a vacina de Dang, conduziu um teste clínico de sucesso em Calcutá e descobriu uma empresa indiana, a Shantha Biotechnics, que estaria dentro dos padrões da OMS.

Implantada em 2009 com o nome de Shancol, vinha em um frasco do tamanho de uma peça de xadrez, não precisava de solução e custava menos de US$ 2 por dose. Mesmo assim, houve pouco interesse, inclusive da OMS.

Faltava à vacina a campanha de marketing que as empresas farmacêuticas fazem quando lançam produtos comerciais, e o “tratamento de enfermaria” estava salvando muitas vidas – quando podia ser posto em prática. A nova vacina não foi usada no surto de cólera do Zimbábue, em 2009, e nem no início do violento surto do Haiti, em 2010.

O “vale da morte” se manteve: sem clientes, a Shantha não podia continuar a construir uma fábrica maior. O impasse acabou apenas quando o doutor Paul Farmer, fundador do Partners in Health, que trabalha na região central do Haiti desde 1987, começou a repreender publicamente a OMS por não avançar de maneira mais rápida.

A organização então aprovou a Shancol, em 2011 e, desde então, a vacina vem lentamente sendo aceita. Em 2013, foi iniciada uma reserva de emergência e a instituição GAVI Alliance comprometeu US$ 115 milhões para elevá-la a seis milhões de doses.

Analisando sua longa batalha para provar o valor da vacina e depois conseguir que fosse aceita, Clemens ofereceu uma explicação que mistura nostalgia e cinismo. “Provavelmente não somos cientistas ruins, mas éramos péssimos defensores da causa.”

“Se essa doença ameaçasse as crianças americanas, os testes teriam sido tão rápidos quanto os da vacina Sabin contra a poliomielite.”

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