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A vida humana, sobretudo a vida em sociedade tal como a concebemos, parece ter alguma vinculação à inconsciência. No geral, viver é estar inconsciente, inconsciente da condição humana e indiferente à procura pela razão das coisas, se é que existe, aí, alguma razão. Inconscientes, sujeitamo-nos ao ritmo de uma melodia banal, e tudo passa a se resumir a essa banalidade repetida, desprovida de sentido e, por vezes, atroz a que chamamos realidade.

No entanto, a despeito da regra geral, também parece ser da natureza humana que surjam, pouco importando sua frequência e amplitude, lampejos de consciência, quase sempre acompanhados de inquietação e angústia. E isso mesmo em ambientes menos propícios para a manifestação destes e de quaisquer outros sentimentos. Ainda que a engrenagem empurre-nos todos a um estado de permanente torpor, sempre sobrará algum espaço para a consciência, e este espaço, espera-se, de alguma forma será preenchido.

A consciência, concretizada em inquietação ou angústia, dá luz à criatividade: porque vê com novos olhos, o ser consciente adquire capacidade para desvelar as sutilezas da vida ou inventar novas formas de concebê-la. Descobre-se um novo modo de ver, descobre-se um mundo; mudam-se os olhos, muda-se o mundo ou, nalguns casos, cria-se um novo mundo. Isto é arte.

Podemos dizer, despidos de qualquer receio, que boa parte do pouco que hoje sabemos e pensamos não teria sido possível sem tais lampejos de consciência. É, afinal, como reflexo da inquietação, da angústia e, em última instância, da consciência do próprio desconhecimento que a busca pelo conhecimento – e por novas formas de conhecimento – é potencializada. E, se é acertado dizer que, no fim das contas, tudo não é fruto senão do acaso, também não podemos negar que há relações de causalidade entre todos os acontecimentos ou eventos, de modo que alguns deles, uns mais que outros, uma vez acontecidos, tornam-se necessários para todo o mais que há de vir.

A arte costuma ser explícita e orgulhosamente desprezada por muitos

É assim que, como costuma dizer Ferreira Gullar, não estava escrito nas pedras, tampouco nos céus, que a Divina Comédia, de Dante Alighieri, deveria ter sido escrita. Mas, uma vez escrita, ela trouxe consigo alterações substanciais no modo como todos nós vemos o mundo. Consequentemente, o próprio mundo, neste sentido, foi alterado, e não há mais como contar a sua história sem ser por ela influenciado: ela tornou-se necessária, muito embora seja bastante difícil precisar a sua influência cultural. Este é o efeito das grandes obras, e da arte em geral.

Pode-se dizer o mesmo de Dom Quixote, Guerra e Paz, Os Miseráveis, Cem Anos de Solidão, Grande Sertão: Veredas e de outras tantas obras. Uma vez escritas e lidas, o mundo deixa de ser o que era e, não raras vezes, esse mundo novo é marcado pelo despertar de mentes que, inconscientes, limitavam-se a reproduzir um estado de coisas injusto e desumano, porque indiferente ao humano, e estúpido, porque ignorante da complexidade da vida. Elas têm o poder de humanizar o que, paradoxalmente, pode haver de mais desumano na vida: o próprio homem, sobretudo suas ações e práticas em geral. Daí é que a importância da leitura dessas obras e do contato com a arte, seja em sua forma literária, seja em todas as outras, não parece ser senão uma obviedade, desde que haja alguma pretensão de difundir uma educação humana, humanista e, logo, conscientizadora.

Por educação humana, se é possível resumir a sua ideia, que é complexa, em poucas palavras, entenda-se uma educação que coloca as pessoas em primeiro lugar. E, apesar disso, vemos acontecer a sua antítese: a arte, especialmente aquilo que se costuma chamar de literatura universal, costuma ser explícita e orgulhosamente desprezada por boa parte daqueles a quem a vida, desde sempre, revelou-se principalmente como uma busca contínua e interminável por posições sociais ou, quando menos, por uma vaga em um mercado de trabalho tão desigual quanto, por vezes, perverso. É o que demonstra a recente proposta de reforma do ensino médio no país, proposta por meio de medida provisória, isto é, sem ter se disposto à discussão que os temas complexos requerem, e que, em sua gênese, tornava opcional o ensino de disciplinas como Artes, Filosofia e Sociologia.

Horas após se submeter a toda sorte de críticas, afirmou-se que aquilo fazia parte de uma versão não definitiva do projeto, publicada por engano, e é claro que esta versão dos fatos soou muito mais como um embuste. Naturalmente, esse desprezo tem um reflexo imediato na metodologia educacional adotada, ao mesmo tempo em que, paradoxalmente, é um efeito imediato dela. E, quanto a isso, ele transmite a mensagem de que devemos educar não para formar humanos e humanistas, mas, ao contrário, para produzir mercadorias.

Tem-se um círculo vicioso que se desvincula, de modo quase absoluto, de qualquer objetivo ou ideal de formação humana. De modo que, em vez de seres conscientes, insistimos em formar autômatos, e isso mesmo em áreas ou profissões que pressupõem, por natureza, a responsabilidade pela vida de outros seres humanos. E, na ausência de uma formação humana, não é raro que as pessoas cujas vidas param nas mãos destes famigerados profissionais sejam reduzidas a objetos ou conceitos.

No Direito, por exemplo, são pródigos os casos de profissionais que, além de se imaginarem portadores de alguma superioridade intelectual, social ou mesmo moral, atuam de forma absolutamente ignorante de seu dever cívico e humano. Despidos de um mínimo de alteridade, isto é, indispostos a considerar o outro como outro, julgam e acusam como verdadeiras máquinas despidas de consciência, reduzindo vidas a números ou conceitos técnicos, como “réu” e “autor”, e, com isso, desumanizando seres humanos e abdicando de sua própria condição humana. Quando procuram demonstrar algum resquício de consciência, julgam sustentados em um moralismo insólito, preconceituoso e estigmatizante. Tudo o que não importa, definitivamente, são as vidas em suas mãos. E, enquanto este estado de inconsciência se reproduz, multiplicam-se as pessoas que, condenadas com uma facilidade repugnante, são enviadas, abandonadas e trituradas em nossos desumanos presídios.

A inconsciência, que parece ter alguma semelhança com a alienação, justamente porque ambas consistem numa mera reprodução irrefletida de um determinado estado de coisas ou de determinadas verdades presunçosamente absolutas, é condição para o surgimento do dogmatismo, da intolerância e, logo, da estupidez. Da consciência, pelo contrário, nascem a autonomia e, com ela, a emancipação, tanto num sentido intelectual como num sentido moral, de modo que cada pessoa possa, enfim, tornar-se o sujeito de sua própria história. Por isso a conscientização é necessária, e ela não poderá ocorrer na vigência de um modelo educacional exclusiva ou prioritariamente voltado ao mercado. Em tempos sombrios, lutar por uma formação humana e humanista e, consequentemente, pelo ensino da arte, sobretudo a literatura, torna-se um imperativo moral.

André Felipe Portugal, advogado, é mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Coimbra (Portugal).
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