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| Foto: Bertrand Guay/AFP

Parece que o discurso recente do ex-presidente Lula (agora na iminência de ser preso) segundo o qual a Europa não tem líderes não tem nenhuma lógica. Por outro lado, Lula tem razão ao afirmar, após o impeachment de sua sucessora Dilma Rousseff, que a esquerda precisa de um novo paradigma para enfrentar a direita – em particular a extrema-direita, que prega o isolamento. A eleição presidencial na França provou esses dois pontos, mesmo que de forma antiética.

Há, sim, líderes, mas muitos são apagados pela mídia ou pelo governo da vez. Benoît Hamon (o primeiro candidato do governo francês), Philippe Poutou e Jean-Luc Mélenchon, que tinham mais de 7 milhões de eleitores, foram colocados de lado em benefício dos dois preferidos das mídias : Marine Le Pen e o vitorioso Emmanuel Macron.

Dentre os candidatos, o mais prejudicado pela queda da credibilidade da esquerda na América Latina e na Europa foi Mélenchon, membro do Partido Socialista desde 1976, ex-prefeito, senador e duas vezes ministro. Em novembro de 2008, decidiu deixar o Partido Socialista para criar o Front de Gauche (“Partido de Esquerda”, em francês). Lançou sua campanha para presidente ao fundar o movimento França Insubmissa e obteve 19% dos votos – apenas 618 mil a menos que a candidata de extrema-direita Marine Le Pen.

O apoio magistral que Macron, que entrou no lugar de Hamon por traição do primeiro-ministro Manuel Valls, recebeu por parte da mídia antes do primeiro turno foi o que determinou toda a configuração dessa eleição. Hamon tentou evocar os termos da lei anticoncentração – o proprietário de uma única mídia não pode ter mais de 40% do capital de uma empresa de mídia e, além disso, o mesmo grupo não pode exceder o limite de 20% em mais de dois meios – não deu certo nem com a mídia, nem com o governo, e ocorreu o mesmo que no Brasil: traição dentro da cúpula. Ante a ameaça que representa o populismo, contra a extrema-direita não se pode assumir qualquer risco: assim justificou-se o primeiro-ministro Valls para trocar o candidato do Partido Socialista, o ex-ministro da Educação Hamon, pelo socioliberal Macron, ex-ministro de Economia.

Com todas essas manobras do governo e da mídia, os números da eleição mostram que os franceses não se reconhecem mais nos candidatos e, por isso, não são representados pela classe política. Um país precisa ter identidade e isso assusta o povo francês, que tem alto grau de incerteza ao risco. Neste fim de semana, os franceses ficaram com medo de ser rotulados como racistas, nacionalistas e até mesmo como fascistas. Mais de 4 milhões de eleitores votaram em branco ou anularam seus votos, um recorde para uma eleição presidencial já marcada por uma alta abstenção (25,38% dos registrados). Também é a primeira vez desde 1969 que a participação no segundo turno é menor que no primeiro.

Os franceses não se reconhecem mais nos candidatos e, por isso, não são representados pela classe política

Quanto ao restante, importante destacar o que encontrou a cientista política e socióloga Nonna Mayer no artigo “Le clivage gauche-droite ne cesse de s’accentuer”: “Durante a votação, a dimensão cultural e a identidade pesam muito mais”. Apesar da perda de identidade com os dois candidatos por boa parte da população francesa, a candidata da extrema-direita Marine Le Pen foi derrotada porque tem inclinação para a ascensão do fascismo na França, um país que tem a fama internacional de ser “o país da liberdade de ingressar e protestar”. Já as denuncias comprovadas de corrupção e a aprovação de um novo código trabalhista pelo uso da cláusula constitucional que elimina a necessidade do aval do Legislativo não impediram a preferência da população pelo novo candidato do governo: Macron venceu com 66,1% dos votos válidos.

No livro Rethinking the French New Right: alternatives to Modernity, Tamir Bar-On demonstra que a nova direita francesa nunca abandonou o seu desejo revolucionário para esmagar a democracia liberal em toda a Europa. Para o escritor, o novo partido de direita não aceita os efeitos políticos ou culturais da modernidade e prega a abolição do multiculturalismo liberal e a dominação étnica dos privilegiados, conhecidos como “europeus originais”.

Na busca de manter a democracia liberal, Macron anunciou na campanha um novo modelo e plano de governança para União Europeia. Além das vantagens bem conhecidas, como a força e facilidade comercial proporcionada pelo bloco, a troca de experiências e conhecimentos em projetos e programas internacionais tende a gerar maior inteligência para todos os envolvidos. Mesmo contrária a essa cultura de compartilhamento e criação de conhecimento relevante, Marine Le Pen, com um discurso fascista, a exemplo dos seus apoiadores, os presidentes americano e russo Donald Trump e Vladimir Putin, conseguiu obter um placar histórico na primeira rodada, com 21,3% no primeiro e 33,9% no segundo turno, enquanto seu pai, em 2012, obteve 4,8 milhões de votos (16,8%). Em 1989, o pai de Marine discursava: “A Declaração dos Direitos Humanos é a mãe de todos os principais movimentos totalitários do século 20, porque muito rapidamente a aspiração ao humanismo e humanitarismo leva ao terror”. Esquece-se a família Le Pen de que a Revolução Francesa derrubou a monarquia absoluta, estabeleceu uma das primeiras repúblicas da história moderna e viu a elaboração da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, que expressam os ideais da nação até hoje.

Leia também:Uma eleição que desafia estereótipos (editorial de 6 de maio de 2017)

Um dia depois de os Estados-membros da União Europeia terem assinado a Declaração de Roma, que fixa o caminho do bloco para a próxima década, a então candidata Marine Le Pen gritou, em discurso na cidade de Lille: “Não queremos os imigrantes de Merkel! O país viverá três grandes eventos: a morte da UE, o fim da globalização selvagem e o desmascaramento do multiculturalismo”. Marie-France Garaud, ex-deputada europeia e eleita a mulher mais poderosa da França em 1973, anunciou ter votado em Le Pen. Ela acredita que a Alemanha tentou domesticar os países europeus, afirmando que “somos confrontados com a possibilidade de um Quarto Reich”. Completa dizendo que só há uma possibilidade de a França ser livre: através da retomada da sua soberania.

A candidata da extrema-direita prometia reduzir o déficit e a dívida, mas não explicou como e nem ao menos expôs críticas ao pacto coletivo vigente de estabilidade e de crescimento da União Europeia. Limitou-se a dizer que vai introduzir um “protecionismo inteligente”, favorecendo empresas francesas nos contratos com o setor público e retornando ao franco como moeda após um referendo para sair da União Europeia, como fez o Reino Unido. Marine Le Pen havia afirmado que “a economia britânica nunca esteve tão bem como depois de os britânicos decidirem retomar sua liberdade”. A constatação não tem lógica, pois já se previa um crescimento do consumo mais lento e a redução drástica de investimentos devido à incerteza relacionada ao Brexit. Mesmo que o afastamento da Inglaterra do bloco só aconteça após ao menos dois anos de negociação com os outros 27 países, se analisarmos a situação social e econômica do Reino Unido em comparação ao período anterior à sua saída da União Europeia, fica claro como uma sociedade egocêntrica pode levar ao isolamento e, então, às crises.

Sem nenhum tipo de lógica, a candidata da Frente Nacional pretendia reduzir a poluição por maximizar a produção na França, em vez de recorrer ao transporte de mercadorias em nível global. Para dinamizar o mercado interno, propunha diminuir a concorrência imposta pelos trabalhadores estrangeiros na França, com um novo imposto sobre a sua contratação.

Leia também:O impacto das eleições francesas (artigo de Jorge Fontoura, publicado em 26 de abril de 2017)

No livro En finir avec les idées fausses propagées par l’extrême droite, Pierre-Yves Bulteau esclarece que o velho slogan que liga a imigração e desemprego é uma mentira suprema, mas infelizmente a nossa geração cresceu com isso. É mais fácil colocar a culpa nos imigrantes do que encontrar uma solução para a crise, destaca Bulteau. Há, obviamente, na França uma noção de que a abertura para outros países – em especial da Africa, a fim até mesmo de justificar a exploração de recursos naturais e o comando político de diversos países – é a causa da crise econômica e social. Le Pen havia proposto a extinção do Acordo de Schengen, que permite a livre circulação de pessoas em 26 países (incluindo 22 da União Europeia); limite de imigração para 10 mil pessoas por ano; e a restauração de controles fronteiriços. Se Le Pen fosse eleita, a aquisição da nacionalidade francesa só seria possível pela filiação ou naturalização.

No que tange à política externa, propôs intensificar os laços com o governo Trump e a retomada da relação com a Rússia. Le Pen considera que a anexação da Crimeia ao território russo, em 2014, não é ilegal, o que sugere que as sanções decididas pela União Europeia e pelo governo Obama contra a Rússia, no rescaldo dessa anexação, não são justificadas.

Segundo sugestões de Putin e Trump, os ataques terroristas seriam a única estratégia efetiva para a vitória de Le Pen. De fato, a candidata cresceu um ponto porcentual após o ataque terrorista do dia 21 de abril, em Paris. Sua política de combate ao terrorismo, segundo o jornal Le Monde, teria como prioridade a luta contra o “comunalismo”. A candidata propunha estender o ato de 2004 contra o terrorismo, proibir símbolos religiosos em espaço público e disciplinar a pregação em francês em mesquitas, o que tenderia a gerar mais ódio.

Le Pen ainda prometera aumentar o orçamento para a defesa de 2% do PIB, no primeiro ano do mandato, para 3% antes do fim do quinquênio. Segundo a base de dados de gastos militares feita pelo Instituto da Paz Internacional de Estocolmo (Sipri), a França tem o terceiro maior orçamento militar do mundo, a terceira maior força militar da Otan e o maior exército da União Europeia, além de ser um dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas e ter o terceiro maior número de armas nucleares do mundo. Mesmo diante deste quadro, Le Pen havia proposto nomear mais 50 mil militares, obrigando as mulheres ao alistamento militar.

Já os principais projetos de governo de Macron são: um acordo entre a Europa e a China nos campos de segurança, comércio e ecologia; um mecanismo de controle dos investimentos estrangeiros em setores estratégicos; o combate à otimização tributária de grandes grupos da internet; centros fechados de pequeno porte para pessoas radicais; e a manutenção das sanções contra a Rússia, enquanto os Acordos de Minsk não forem respeitados.

Em síntese, a vitória de Macron foi melhor para a França, mas, sem uma forte participação, com controle social, seu governo tende a obter os mesmos resultados do atual, de François Hollande: corrupção, crise econômica e terrorismo.

Cristiano Trindade de Angelis é PhD em Estratégia e Gestão de Projetos.
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