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| Foto: Lula Marques/Agência PT

Vivemos realmente tempos estranhos. Num quadro de normalidade, as pessoas que produzem riqueza de maneira lícita tentam de todas as maneiras fugir da incidência tributária ou, quando menos, minimizar seu impacto sobre sua atividade econômica. Por vezes – não tão raras assim, infelizmente –, por expedientes claramente ilícitos como dolo, fraude ou simulação, incorrendo em sonegação de tributos, com consequências penais e com multas administrativas agravadas. Ou, ainda, mediante caminhos amparados na lei, incorrendo no que se convencionou denominar de elisão tributária, que é a forma lícita de se economizar tributos ou de escolher o modo lícito menos gravoso de pagar tributos, já que, por lei e por princípio, ninguém é obrigado a escolher o caminho tributário mais oneroso sobre sua atividade.

Sendo assim, é bastante interessante o afinco incomum com que quase todo o universo de políticos investigados em diversas operações da Polícia Federal e seus parentes se empenham em cumprir a lei tributária, pagando religiosamente os tributos sobre o resultado das suas supostas atividades. Mesmo quando têm a opção de pagar de um modo menos gravoso, dispensam esse viés e optam pelo modo mais agudo de recolhimento.

O verniz de legalidade dado ao patrimônio do investigado não resiste a uma fiscalização elementar

A razão para isso é muito simples. Com o pagamento dos tributos que incidem sobre as atividades que alegam, pretendem que suas atividades sejam consideradas legais, e isso apenas por emitir nota fiscal e por pagar os tributos sobre elas. É como se a emissão da nota fiscal e o pagamento de tributos sobre propinas fosse a pia batismal onde os bandidos sofisticados e corruptos em geral tentam expurgar os pecados dos seus malfeitos, dando aos seus respectivos patrimônios um verniz de legalidade, que, todavia, não resiste a uma fiscalização elementar.

É do gosto dos políticos investigados fazer constar nessas notas fiscais atividades genéricas como “prestação de serviços de consultoria”, “palestras” ou afins, justamente porque nesse tipo de atividade não há um resultado físico para ser investigado, ou, quando muito, resultam apenas em um laudo ou um parecer, que pode, por vezes, até ser copiado da internet, como alega o Ministério Público no caso de um dos filhos do ex-presidente Lula, cujo arquivo periciado teria sido elaborado depois de iniciadas as investigações e que contava com trechos copiados da Wikipedia.

Fica sempre, nesses casos, a dúvida sobre quanto poderia ser cobrado pelos serviços, se é valor compatível com o que o mercado pagaria para aquele profissional, se o serviço efetivamente foi prestado, ou se o político ou seus parentes teriam know-how para prestar os serviços para os quais foram contratados. Apenas uma investigação poderia esclarecer essas dúvidas para ajudar a caracterizar a conduta criminosa, o que, no entanto, nem sempre acaba acontecendo, uma vez que é preciso que o caso chame a atenção das autoridades fiscais por denúncias, colaborações premiadas ou por desdobramento de outras investigações, já que os deveres tributários são cumpridos com esmero incomum por essas pessoas, dificultando a identificação dos malfeitos pelos computadores da Receita Federal, o que dificulta sobremaneira o início da investigação.

Leia também:Sentença traz fartas provas da corrupção de Lula (editorial de 12 de julho de 2017)

Essa dificuldade é ainda agravada por aquilo que se conhece internamente na Receita Federal como “pessoas politicamente expostas” – uma lista de cerca de 6 mil nomes de políticos e dirigentes de estatais que só podem ser investigados com a anuência de alguma autoridade fiscal superior, numa espécie de “foro privilegiado” administrativo, tal qual denunciou recentemente a Associação Nacional dos Auditores da Receita Federal (Unafisco). Isso provavelmente explica muito da dúvida recorrente a todo contribuinte brasileiro, de como foram movimentados bilhões de reais em propina sem chamar a atenção da Receita Federal, mesmo com todos os mecanismos de fiscalização e cruzamento de informações que estão disponíveis e são tão surpreendentemente eficientes contra o cidadão comum.

O caso recente do ex-presidente da Petrobras Aldemir Bendine não difere dos demais políticos investigados. Sua defesa se apressou em alegar, como acontece amiúde, que os recursos foram declarados à Receita Federal, que foram emitidas as notas fiscais e que foram recolhidos os tributos sobre os valores. Aparentemente, trata-se de mais um que tenta expurgar com o batismo da nota fiscal as impurezas de seus atos e recursos. Na Idade Média, a Igreja estava disposta a perdoar os pecados mediante pagamento de indulgências, mas esse não é o papel do Estado laico contemporâneo, ainda que dois irmãos, recentemente, tenham demonstrado que, sob certas condições e com a orientação certa, talvez isso seja possível para alguns.

Alexsander Roberto Alves Valadão, advogado, é mestre e doutor em Direito Tributário e professor da PUCPR.
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