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| Foto: KCNA via KNS/AFP

Em tempos de retrocessos notáveis, a escalada militar que opõe a Coreia do Norte aos Estados Unidos, a par de tantos eventos imponderáveis, é o que mais tem preocupado e assustado a comunidade internacional. Bem além de meros delírios anacrônicos, alheios à racionalidade moderna, a questão envolve elementos estratégicos complexos, com todos os ingredientes para agravar-se com imprevisível desenlace. Afinal, o que estaria a opor países tão distantes e díspares – e de forma tão grave –, ainda que por resquícios de guerra do século passado, com seus belicosos caciques a ameaçarem-se com bombas atômicas, algo que parecia banido da inteligência e da humanidade?

A outra desconcertante pergunta é como a Coreia do Norte, de tão limitados recursos, de rasteira ditadura tão caricata a evocar o cinema mudo de Chaplin, com tantas condenações internacionais, aparentemente abandonada por seus aliados, como, mesmo assim, conseguiria efetivar seu ameaçador programa nuclear e balístico?

O que está em jogo é a partilha de poder na Península da Coreia

A resposta dos think tanks das relações internacionais parece convincente: o que está em jogo é a partilha de poder na Península da Coreia. A queda do regime de Pyongyang seria o fim da divisão coreana – a queda do último Muro de Berlim –, com advento de rico país unificado, potência regional pró-ocidente, um novo Japão aliado aos Estados Unidos, e que anularia a presença chinesa na região, fronteira não apenas ideológica, mas de confronto de poder econômico, como nas razões imperecíveis do velho e bom materialismo histórico.

Bem por isso a China é a principal fiadora do regime de Kim Jong-un, detentora de 80% de seu comércio e clara interessada na estabilidade do país, ainda que impaciente com a rebeldia agressiva e irracional de seu protegé. Todos os embargos impostos em forma de sanções da ONU foram até o momento insuficientes para cessar a corrida atômica, com pressões políticas e comerciais chanceladas inclusive por Pequim e Moscou sem resultados. O novo passo, na forma de outras resoluções da ONU, contempla embargo de petróleo, o que poderá paralisar o dependente país, desde sua máquina militar convencional até a enigmática parafernália nuclear. A deliberação e implementação da medida, a ocorrer só com unanimidade das superpotências, será difícil prova para a diplomacia chinesa: como dar estabilidade à Coreia do Norte, se sufocar sua fonte de poder? Como ficaria seu ditador hereditário, privado da política de terror atômico que sustenta seu precário regime de cidadania escrava?

Em outro lado da questão, são improváveis concessões apaziguadoras às reivindicações de Kim Jong-un, com o reconhecimento de seu governo por Washington e Seul. Entre as duas Coreias, mais de meio século após o fim da guerra vige apenas armistício, mas não tratado de paz, em conflito que tecnicamente ainda não terminou. Tal status é o que permite manobras conjuntas e a presença militar norte-americana em bases na península, lamentável forma de paz armada que se consolidou. A história parece não reservar espaço para inocentes.

Leia também:Impasse nuclear (editorial de 8 de setembro de 2017)

Demétrio Magnoli: Três enganos sobre Kim (10 de setembro de 2017)

Por último, mas não com menos importância, resta desvendar qual seria o papel da Rússia em tal quebra-cabeças, diante da presença de seus antagonistas históricos, Estados Unidos e China, agora confrontados em mesmo potencial teatro de guerra. A versão insólita de um Putin apaziguador, chamando ao diálogo e à negociação, bem revela a complexidade da explosiva questão, em que palavras soam divorciadas de intenções.

São todas essas perguntas em aberto que demonstram os riscos da escalada nuclear. Pese embora as superpotências não colidam abertamente, tem-se todo um emaranhado de interesses dissimulados, de duplos discursos, com negociações secretas e pactos inconfessáveis, ao total arrepio do direito internacional clássico. Crise agravada ainda na forma de comunicação, sem tradicionais canais diplomáticos, em que adversários, detentores de poder atômico real, trocam insultos boquirrotos de internet, a banalizar e a escancarar o efetivo risco a que está exposta a desassossegada humanidade. Como no manifesto histórico de Bertrand Russell e de Albert Einstein, em 1955, na criação das Conferências de Pugwash, de grande importância na política de desarmamento, resta sempre evocar: “Pensemos em nossa humanidade!”

Jorge Fontoura é advogado e professor.
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