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Constituição do Brasil.
A Constituição cidadã, como dizia Ulysses Guimarães| Foto: Beto Barata/PR

Em outro artigo anterior publicado na Gazeta do Povo, propus um olhar pelo retrovisor a fim de enxergar, no alvorecer da justiça no Brasil, os germes de nossos dilemas sociais e de nossas inseguranças jurídicas. A Carta Magna, ratificada no outono de 1988, teria deixado de lado a sociedade civil e econômica, outorgando o setor político a administrar bens que não produzia. Aquele “bebê de Rosemary” – como Roberto Campos descreveu o anteprojeto apresentado em 1987 pelo relator Bernardo Cabral – chegou à pretensão de querer corrigir alguma imperfeição deixada por Deus, prometendo “liberdades igualadas” e felicidades incondicionais. Após quase 33 anos, não tardaria muito mais para que essas inquietações dessem lugar a novas críticas propositivas. É nessa esteira que, enfrentando o satânico bebê de 88, caminha o anteprojeto de Modesto Carvalhosa, dado a conhecer em fevereiro deste ano, no livro Uma nova Constituição para o Brasil: de um país de privilégios para uma nação de oportunidades.

O diagnóstico feito por Carvalhosa, jurista que dispensa apresentações biográficas, é de que há uma clara divisão institucional no país: “de um lado, os privilegiados, no setor público, e, de outro, os pagadores de impostos, no setor privado”. A distorção é evidente. O setor produtivo, responsável pelo desenvolvimento econômico, cultural e social, sustenta a duras penas um Estado hegemônico, que não só administra mal o que recolhe, como ignora os interesses da sociedade civil. Mais que contrariar a tendência das ciências política e jurídica – que tem entendido o “Estado de Direito” como aquele que legisla tendo em vista a moral social –, a inversão de funções contraria também o senso comum, pois, nessa lógica distorcida, a população, os produtores e os pagadores de impostos são vistos como um mal necessário para o funcionamento do Estado.

Somente a indicação deste problema e os debates que o circundam já teriam feito valer os esforços do autor. Resolver o impasse do qual padece atualmente o país, da monopolização das esferas sociais por uma elite política ocupada por grupos oligárquicos e vendida aos membros desse próprio grupo, cujos interesses são opostos ao interesse público, bastaria para ser lembrado. Porém, em Uma nova Constituição para o Brasil, o autor persegue um objetivo maior: resgatar o sentido de povo e nação, de onde emanam as normas morais, e defender as liberdades públicas e a “equidade de deveres e direitos para todos os membros da sociedade”. Ou seja, contrapor o sistema atual de privilégios constitucionais a uma sociedade de oportunidades.

Entre os 134 artigos apresentados e justificados pelo jurista, alguns se destacam por atacar frontalmente essa distorção. Assim como em outros, no artigo 4.º o autor defende que “os servidores públicos, nos três poderes e nas três esferas federativas”, deveriam se submeter ao mesmo regime “contratual, previdenciário e tributário” que os trabalhadores do setor privado. Na leitura de Carvalhosa, ao longo da história brasileira, criou-se entre os dirigentes políticos e servidores públicos uma casta especial imune aos riscos do mercado, que, em detrimento das necessidades e anseios da nação, “usufrui dos recursos escassos do Estado em seu próprio benefício”.

A lógica de castas e privilégios políticos parece acompanhar os movimentos industriais vividos pelo Brasil desde o século 19. Buscando excluir os riscos de produção da lógica de Estado, o funcionalismo público e os grupos do “domínio oligárquico” teriam usado as últimas Constituições para se protegerem do mercado e, a partir da Constituição de 1988, teriam consolidado a ideia de que quem pagaria pelas proteções e privilégios seriam os brasileiros produtivos. Como ilustra o autor, é flagrante desvio de função quando o Estado age como transferidor de risco. No modelo atual, aproximadamente 11 milhões de servidores vivem sem correr nenhum risco, enquanto seus financiadores, os 100 milhões de brasileiros ativos no mercado, arcam com todas as despesas, riscos e contratempos. Como proposto pelo autor, em um Estado que, em vez de garantir privilégios, garantiria oportunidades, os riscos deveriam ser mitigados pelos esforços coletivos e individuais do setor privado.

Nessa direção, outro artigo chama a atenção por propor salvaguardar o bem público e garantir que seu destino seja do interesse da nação. Defende-se, no artigo 69, que os recursos financeiros dos partidos deveriam vir “de seus filiados e simpatizantes”. Neste, estaria vedado, ainda, o recebimento de proventos e subsídios de qualquer entidade pública ou jurídica. Atualmente, como é apontado no documento, os partidos políticos possuem uma natureza privada, registrados como pessoas jurídicas, e, por isso, não há justificativas para que o Estado mantenha o financiamento, a manutenção e a propaganda eleitoral dessas entidades, não sendo tal prática menos que imoral.

Em que pese as frutíferas propostas de Modesto Carvalhosa, que buscam sanar nossas dúvidas e nossos embates contemporâneos, afastando o atraso e uma jurisprudência antiquada de nossa Carta Magna, o texto mantém o Estado no papel de garantidor da vida, da liberdade e da felicidade, funções já criticadas outrora por outros pensadores. Entretanto, ainda assim, adiciona, como elemento objetivo do artigo, a garantia à propriedade, elemento fundamental para o livre exercício jurídico, econômico e social. Nesse mesmo sentido, remediando o artigo 1.º para os que possuem antipatia ao termo “tutela do Estado”, os outros elementos são justificados ao longo do livro como garantias individuais para que o cidadão se sinta livre para expressar-se e exercer com plenitude uma política democrática.

O anteprojeto de Modesto Carvalhosa imprime no leitor o sentimento de representatividade. Os artigos e as justificativas que englobam, entre outras questões, a defesa da participação civil na política com atualização das regras eleitorais; a queda de barreiras burocráticas e tributárias para o desenvolvimento econômico, cultural e social do setor privado; a abolição do juiz de garantias e a clarificação do sistema de condenação (que passaria a ser logo após a determinação do juiz regional); o projeto de equilíbrio orçamentário, sem cair na ilusão da mera simplificação tributária; e a moralização da relação entre os poderes da República parecem vir ao encontro dos anseios da população e responder suas questões. Contra a “partidocracia” e em prol de uma democracia que preze pela liberdade e oportunidade, o livro propositivo de Carvalhosa é um passo em direção ao aprimoramento de nossas instituições e um argumento indispensável na defesa dos direitos individuais.

Rodolfo Nogueira da Cruz é mestre e doutorando em História e bolsista pela Fapesp.

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