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 | Marcelo Andrade/Gazeta do Povo
| Foto: Marcelo Andrade/Gazeta do Povo

É recorrente afirmar que “o povo tem memória fraca”. O ditado parece justificar, ainda que não completamente, a instabilidade axiológica, embora não descreva todos os pesos e medidas valorativas – bastante antagônicas – que o conjunto de pessoas que compõem “o povo” tem. Seria memória fraca ou abstenção de opinião quando o grupo no poder o representa?

Nos últimos dias, veio a público um escândalo – pelo menos no sentido moral do termo – envolvendo alguns ministros e Michel Temer. O crime de concussão não foi consumado porque o ministro “enquadrado” por seus colegas e pelo presidente não cedeu à pressão e, após abdicar do cargo, denunciou e trouxe aos holofotes midiáticos o compadrio criminal que domina o grupo do poder federal. Apesar da denúncia, poucos protestaram ou repudiaram o ato, talvez pela equivocada concepção de corrupção em que muitos se concentram apenas em somas estratosféricas de dinheiro e desconsideram o fisiologismo escancarado da gestão temerosa como ato corruptivo.

A corrupção não era a justificativa para o impeachment; do contrário, as pessoas estariam pedindo a saída de Temer

Há alguns meses, o teor da conversa entre a Dilma e Lula “abonava” o grampo, nos discursos da oposição e nos desejosos do impeachment da ex-presidente. Porém, o que se vê atualmente, em uma reversão valorativa, é a base aliada atual (ex-oposição) condenar veementemente o ex-ministro Calero por ter gravado Temer, Geddel e Padilha. A vítima e os algozes sofreram um processo às avessas. Critica-se Calero enquanto se solidariza com os atores da negociata concussionária que envolve, além do presidente, (ex-)ministros do primeiro escalão administrativo – Geddel e Padilha – e alcança a ministra da Advocacia-Geral da União, Grace Mendonça.

É bastante visível, nesses seis meses vividos sob as ordens do presidente não ratificado em urnas, mas por um grupo político tão investigado e delatado como ele, que os interesses particulares do grupo político hegemônico prevalecem em relação ao bem-estar social. E é nesse sentido que a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 241, aprovada na Câmara Federal e que tramita no Senado como PEC 55, parece ser mais uma chicana jurídica para privilegiar os apoiadores e mantenedores do impeachment. Com o argumento de que o desequilíbrio entre receitas e gastos deve ser contido para frear o aumento anual das contas públicas, a proposta pretende limitar o crescimento das despesas do governo. Um ingênuo, como tantos que foram às ruas pedindo o fim da corrupção a partir da deposição de Dilma, poderia crer que a medida é eficaz, pois impediria a extrapolação de gastos. Entretanto, o que o projeto propõe é a limitação em investimentos em educação, saúde e segurança – nenhum desses setores utilizados por políticos de alta casta, vide o horror de Anthony Garotinho quando levado a hospital público.

Sérgio Buarque de Holanda, em Raízes do Brasil, de 1936, afirmou que o Estado não pode ser uma ampliação do círculo familiar, muito menos uma integração de certos agrupamentos ou vontades particularistas. Contudo, vemos justamente as esferas governamentais repletas de fisiologismo, clientelismo, nepotismo, peculato e concussão, entre outros crimes. Basta abrir os noticiários cujas manchetes ilustram os acertos entre Temer e os presidentes da Câmara e Senado, poderes que deveriam ser autônomos, segundo Montesquieu, teorizador do Estado moderno democrático no século 18.

A idiossincrasia de vários grupos políticos e dos manifestantes contra a corrupção revela que ela não era a justificativa para o impeachment; do contrário, estariam protestando e pedindo a saída de Temer, dos ministros investigados e delatados na Operação Lava Jato. A tentativa de aprovar a anistia do caixa dois é outra prova contundente de que o lado podre da política tem tomado conta do país. A destituição de Dilma não fez faxina, passou perfume no fedor secular da política brasileira.

Claudiana Soerensen é doutoranda e mestre em Letras, com área de concentração em Literatura e História.
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