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| Foto: José Cruz/Agência Brasil

Recentemente, li reportagem que me deixou muito intrigado – na verdade, perplexo. Com argumentação aparentemente científica e procedente de dados oficiais, apresentava a seguinte afirmação: “Reforma deve aprofundar fosso salarial de não sindicalizado”. O texto era contundente: “As novas regras trabalhistas devem aprofundar a diferença salarial entre trabalhadores sindicalizados e não sindicalizados, na visão do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea)”, à medida que, segundo estudo coordenado pelo instituto, “sindicalizados ganham 33,5%, na média, mais que os não sindicalizados”. A pergunta que se faz: como assim?

Se isso, de fato, fosse uma realidade, seria a “materialização jurídica da inconstitucionalidade”. Não é possível esse tipo de discriminação, ainda que eventualmente alguém possa considerá-la positiva. Um trabalhador sindicalizado não pode, somente por essa condição, ganhar mais ou ter qualquer outro benefício sobre um trabalhador que não pertença associativamente a um sindicato. Aliás, a Constituição Federal é taxativa neste sentido. No seu artigo 8.º, inciso V, ela é enfática: “ninguém será obrigado a filiar-se ou a manter-se filiado a sindicato”. Logo, essa condição não é meio para se obter qualquer benesse institucional.

Mais ainda: todos os instrumentos coletivos – acordos ou convenções coletivas de trabalho – que trazem direitos (além daqueles previstos em lei) aos trabalhadores pertencentes a uma determinada categoria que o sindicato representa não fazem quaisquer distinções ou irradiações diferenciadas entre os direitos ali previstos para trabalhadores sindicalizados ou não, pois estão juridicamente proibidos de fazê-lo. Não há diferença.

A filiação a um sindicato não é meio para se obter qualquer benesse institucional

De onde vêm, então, os dados citados na matéria dizendo que essa diferenciação existe? Que, por exemplo, “os trabalhadores não sindicalizados ganhavam, em média, R$ 1,675,68, e os associados a sindicatos ganhavam R$ 2,237,86”? Ou, então, que “36% dos sindicalizados recebem auxílio-saúde, contra 20,3% dos não sindicalizados”? Que “63,9% dos trabalhadores sindicalizados têm acesso ao auxílio-alimentação, ante 49,3% dos não sindicalizados”? Difícil saber. Jurídica e estatisticamente, isso não existe. Juridicamente, é impossível, é inconstitucional. Revela-se, pois, como mais uma “pós-verdade”.

Que os sindicatos têm um papel importantíssimo na defesa dos trabalhadores ninguém contesta – eles têm essa função e obrigação por força da Constituição Federal, que prevê que lhes cabe a defesa dos interesses individuais e coletivos de todos os trabalhadores da categoria. Que, com a reforma trabalhista, eles terão mais força política e institucional, disso igualmente não há dúvida. Mais ainda: por certo, todos sabem, a associação de trabalhadores aumenta ainda mais esse vigor representativo. Agora, daí a se concluir que quem não é associado perderá com a reforma trabalhista há uma distância muito grande. Além de simplesmente não ser verdade sob a ótica legal.

Leia também: O verdadeiro viés da reforma trabalhista (artigo de Marlos Melek, publicado em 11 de junho de 2017)

Leia também:Capital x trabalho, um conflito desnecessário (artigo de Helder Vicentini, publicado em 16 de agosto de 2017)

Os sindicalizados atualmente, e somente por esse motivo, já têm mais direitos que os demais. Se não têm, como podem perdê-los? Como perder alguma coisa que não se tem? Não há o mínimo fundamento técnico-jurídico e mesmo científico para essa despropositada afirmação, na medida em que não existe suporte legal para sustentar uma assertiva como esta.

É importante – na verdade, democraticamente imprescindível – que todos os posicionamentos favoráveis e contrários à reforma trabalhista sejam exteriorizados neste momento de profundas mudanças. Podem e devem, por certo, ser embasados em crenças ideológicas e posicionamentos políticos. Tudo isso faz parte do jogo democrático. Mas divulgar determinada apuração, em estudos científicos e estatísticos, com base em dados que são na origem ilícitos, por ausência de possibilidade jurídica de materialização, não é legal nos dois sentidos: jurídico e democrático. Não se pode utilizar pesquisas da mesma maneira que um bêbado utiliza um poste, mais pelo apoio que pela iluminação.

Antonio Carlos Aguiar
é doutor e mestre em Direito do Trabalho, diretor do Instituto Mundo do Trabalho e professor da Fundação Santo André e da PUC-SP.
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