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| Foto: Alexander Nemenov/AFP

É o clichê hollywoodiano que foi adotado por vilões, de Loki, o deus malandro de Os Vingadores, da Marvel, a Raoul da Silva, arqui-inimigo de James Bond em 007 – Operação Skyfall: eles são capturados, mas aí o herói percebe, tarde demais, que ser pego era parte do plano maligno o tempo todo. Com a divulgação, na última sexta-feira, de um indiciamento que detalha o Projeto Lakhta – a ampla ofensiva da Rússia para interferir nas eleições presidenciais de 2016 –, vale questionar se o presidente Vladimir Putin não adotou um roteiro parecido.

O documento incriminador publicado pelo Departamento de Justiça identifica 13 russos associados à “Agência de Pesquisa da Internet” que, apesar do nome inócuo, reunia trolls profissionais muitíssimo bem pagos, responsáveis por uma campanha de desinformação que saiu das redes sociais para as manifestações do mundo real. Se houvesse ainda alguma dúvida de que o objetivo da intervenção russa era prejudicar a campanha de Hillary Clinton e consolidar a de Donald Trump, a diretiva interna citada no indiciamento deixou bem clara sua intenção: “Use toda e qualquer oportunidade para criticar Hillary e os outros (com exceção de Sanders e Trump; esses nós apoiamos)”.

O fato de a Rússia ter preferido a vitória de Trump à de Clinton não é nenhuma surpresa: o magnata do setor imobiliário há muito vinha mostrando sua admiração por líderes autocráticos em geral, particularmente por Putin, mas o fato é que, como em qualquer jogo de estratégia, os melhores movimentos são aqueles que conquistam múltiplos objetivos. O indiciamento de sexta deve servir para lembrar que o Projeto Latkha não queria apenas influenciar o resultado das eleições, mas também seu tom e a atitude dos norte-americanos em relação às próprias instituições democráticas.

Outros candidatos republicanos também foram atacados: apenas Trump, Bernie Sanders e Jill Stein, do Partido Verde, foram poupados

Há uma história de bastidor vital para a interferência russa: a birra que o Kremlin nutre há tempos contra Clinton, corroborada em 2011, quando, como secretária de Estado, ela questionou se as eleições parlamentares russas – marcadas por alegações de fraude e manipulação – tinham sido “livres e justas”.

A maior parte da iniciativa de trollagem on-line da equipe russa teve Clinton como alvo, mas o indiciamento observa que outros candidatos republicanos também foram atacados: apenas Trump, Bernie Sanders e a candidata do Partido Verde, Jill Stein, foram poupados. O trio tinha algo em comum além da oposição a Clinton: suas campanhas tiveram como tema central a alegação de que o sistema político dos Estados Unidos era fundamentalmente manipulado, mesma declaração que deixou Putin tão irritado.

O tema se repete em vários ataques dos principais grupos russos: “Hillary Clinton já cometeu fraude eleitoral durante a convenção democrata de Iowa”, declarou a postagem de uma rede social. Uma das manobras mais memoráveis patrocinadas pela equipe russa, contratar uma norte-americana para participar de comícios como Clinton vestida como presidiária, desfilando dentro de uma cela, segue o mesmo padrão. Ela não podia ser retratada meramente como uma candidata inferior, mas sim como criminosa, que só ganharia com ajuda de corrupção.

Trump se dedicou incansavelmente à mesma mensagem, não só puxando as famosas palavras de ordem (“Prendam-na!”), mas consistentemente declarando que só seria derrotado – resultado que as pesquisas, ao longo de toda a campanha, sugeriram ser o mais provável – se os democratas manipulassem as eleições.

Leia também: Feliz aniversário, América! (artigo de Taiguara Fernandes de Sousa, publicado em 4 de fevereiro de 2018)

Analisando a situação, é natural achar que o principal objetivo da Rússia era consolidar a vitória surpreendente de Trump, o que agora sabemos ter ocorrido. Entretanto, se fossem confiar nas mesmas pesquisas em que o resto do mundo confiava, saberiam que a possibilidade era mínima. Parece provável que uma disputa apertada transformasse Trump na pedra no sapato de Clinton, questionando a legitimidade de seu governo com a perda pública da compostura pelo fato de ter sido passado para trás. Só não imaginavam que Trump faria isso mesmo tendo ganhado, insistindo, sem nenhuma prova, de que perdeu no voto popular só porque houve fraude eleitoral.

Mesmo se trabalhássemos com a hipótese de que o principal objetivo da Rússia era semear a dúvida em relação à integridade e a transparência das eleições norte-americanas – e, por tabela, destruir a credibilidade de qualquer crítica ao pleito russo –, então a revelação de sua interferência pode ser encarada não como a não realização dessa meta, mas como uma forma ainda mais perversa de levá-la adiante.

Lógica semelhante pode ser aplicada aos ataques cibernéticos a diversos sistemas de inscrição eleitoral que começaram a pipocar em junho e, mais recentemente, foram confirmados por integrantes do Departamento de Segurança Interna. É consenso entre os especialistas que o nosso sistema eleitoral incomumente descentralizado torna extremamente difícil uma mudança clandestina no resultado de uma eleição nacional através de hackeamento vindo de fora. Mas ele talvez não tenha sido necessário: o mesmo efeito pode ser obtido com a disseminação da incerteza sobre a integridade dos resultados, permitindo assim uma crise de legitimidade gerada pelo vitorioso.

Demétrio Magnoli:Trump, dois discursos em crise (9 de março de 2017)

O próprio pessoal da inteligência dos EUA se mostrou cético em relação à intenção da Rússia em ser pega. “Eles se mostraram excepcionalmente barulhentos durante a intervenção”, descreveu o ex-diretor do FBI James Comey ao Congresso em depoimento prestado em março passado. “Parecia que não estavam nem aí se soubéssemos ou não.” Inserida em qualquer discussão política on-line, onde a acusação “Bot russo!” se tornou lugar-comum, capaz de encerrar qualquer conversa, é difícil negar que não tenha dado certo.

Se isso soa plausível, devemos também considerar que nossa reação política pode ter sido parte do plano. Com Trump se recusando categoricamente a implantar as sanções impostas à Rússia pela grande maioria do Congresso, os legisladores começaram a prestar atenção às plataformas on-line a partir de onde tanta desinformação se espalhou. “Vocês criaram essas plataformas e agora elas estão sendo mal usadas. Façam alguma coisa a respeito, ou faremos nós”, disparou a senadora democrata pela Califórnia Dianne Feinstein, em um painel de advogados do Google, Facebook e Twitter em novembro.

Seria a mais fina – e desagradável – ironia. Não só pela nossa “interferência” nas eleições internas deles, os russos há muito ressentem a crítica dos EUA em relação à sua abordagem repressiva ao discurso on-line. Seu uso das plataformas da internet para corromper nossa eleição presidencial não se traduz só como um ataque, mas um argumento implícito: “As liberdades que vocês trombeteiam com tanto alarde, sua indisposição em regulamentar o discurso político na internet, sua tolerância com o anonimato são fraquezas – o que podemos provar, explorando-as”.

Por mais urgente que seja a necessidade de os EUA tomarem medidas para evitar que a situação se repita nas próximas eleições, é preciso ter cuidado para que nossa reação não represente um acordo tácito.

Julian Sanchez é membro do Instituto Cato.
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