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 | Daniel Castellano/Arquivo Gazeta do Povo
| Foto: Daniel Castellano/Arquivo Gazeta do Povo

De todos os pontos que a ascensão de Donald Trump levantou – como o valor da experiência política na governança, a qualificação de um executivo para se tornar governante ou o perfil dos republicanos como defensores dos ricos e os democratas atuando como sentinelas dos pobres –, talvez nenhum seja tão desconcertante quanto a questão mais básica do momento: a verdade ainda é importante?

E ela ganhou novo fôlego, não faz muito tempo, quando surgiram relatos de que o presidente, que já tinha admitido sua presença no vídeo do Access Hollywood, sugeriu não ter feito os comentários que fez na fita. E também voltou a questionar se Barack Obama nasceu nos Estados Unidos, mesmo tendo dito, no ano passado, que aceitava a verdade. Em discurso, contradizendo praticamente todas as análises do projeto de lei da reforma fiscal, garantiu que a medida prejudicaria os ricos, incluindo a si mesmo.

Durante quase meio século de profissão – de repórter da gazeta do bairro a correspondente político nacional e daí para editor-executivo de jornal –, sempre me orientei pela estrela-guia do jornalismo, ou seja, a convicção de que há uma verdade objetiva que pode ser descoberta e transmitida através do trabalho duro imparcial e a boa-fé apaixonada, e que o resultado desse trabalho, quando cuidadosamente documentado, pode ser aceito como a verdade.

Trump virou essa realidade aceita de cabeça para baixo, semeando dúvidas sobre a veracidade dos registros, promovendo o conceito de que a mídia tradicional produz “notícias falsas”. Utilizando uma frase evocativa e sinistra da época da Revolução Francesa e usada por Lenin e seus sucessores soviéticos, ele declara que grandes porções da imprensa são “o inimigo do povo”.

A história humana está repleta de exemplos de momentos em que a verdade foi deturpada ou omitida

De fato, grande parte da retórica trumpiana sobre a questão é menos política e mais teatral, criada para minimizar as histórias negativas, como se a imprensa nunca tivesse criticado os presidentes anteriores e ninguém tivesse dado verdadeiras surras em Bill Clinton (no episódio Monica Lewinsky) e em George W. Bush (com a declaração de guerra no Iraque).

Apesar disso, ele pode ser considerado o responsável por gerar, ainda que inadvertidamente, o período de autoavaliação jornalística mais profundo das últimas décadas, que acontece em um período incomum de turbulência financeira para o setor. Por toda parte há afirmações deprimentes sobre a diminuição da credibilidade da imprensa, lembrete desanimador de que pelo menos 30% da população do país, talvez mais, encare nosso trabalho como inútil, tendencioso ou não verdadeiro. Tanto nas salas de redação como nas bancas de toda a nação, estão sendo levantadas questões difíceis, mas vitais, sobre os métodos e motivos da mídia, forçando os geradores e consumidores de notícias a questionar suposições dadas há muito como certezas inabaláveis.

No início deste ano, Tim Murphy, republicano cujo distrito eleitoral inclui os subúrbios da região sul de Pittsburgh, disse, em evento de arrecadação de fundos a portas fechadas, realizado no sofisticado Clube Duquesne, que o nosso jornal, o Post-Gazette, era especializado em “notícias falsas”. Uma das minhas fontes me ligou enquanto o congressista ainda falava; findo o discurso, atônito, ele recebeu uma ligação minha, exigindo um pedido de desculpas, que foram dadas meio a contragosto. Oito meses depois, nosso jornal noticiou que o congressista, ferrenho combatente do aborto, tinha tentado convencer a amante a passar pelo procedimento. Logo depois, sob pressão, ele renunciou.

Nossas convicções: O poder da razão e do diálogo

Isso virou rotina. O relações-públicas mais famoso de Pittsburgh me disse que uma reportagem totalmente favorável e 100% correta das atividades de sua instituição era mais um exemplo de notícia falsa; nossa repórter policial recebe toda hora e-mails que a acusam de produzir notícias falsas; leitores ligam para a nossa especialista em tecnologia para acusá-la de produzir notícias falsas. Faço palestras e falo para a comunidade o tempo todo e, de um ano para cá, infalivelmente, alguém sempre pergunta se o Post-Gazette publica notícias falsas. Aliás, quase sempre é a primeira questão levantada.

Minha resposta: nos 15 anos desde que me tornei o editor-executivo, jamais publicamos, conscientemente, uma história, um parágrafo, uma sentença, uma única sílaba que não fosse verdadeira.

Não é que essas questões nunca tenham surgido antes; é possível reunir fatos estabelecidos para alegar, por exemplo, que os 906 projetos de lei aprovados pelo Congresso de 1947 a 1949 – incluindo a Lei Taft-Hartley, a reorganização das Forças Armadas e a criação da Agência Central de Inteligência (CIA) – comprovam que a casa foi produtiva naquele período. Entretanto, também é possível organizar os mesmos fatos, ou ressaltar alguns e omitir outros, para provar o contrário, como Harry Truman fez nas eleições de 1948, quando, com uma retórica politicamente forte, falou do 80.º “Congresso do faz-nada”.

Nossas convicções:O valor da comunicação

Durante o escândalo do Watergate, o vice-presidente Spiro Agnew falou dos “nababos verborrágicos do negativismo” para atacar a imprensa que, pouco a pouco, ia revelando as mentiras do então presidente Richard Nixon. Este ano, tivemos Kellyanne Conway, “conselheira” de Trump, introduzindo a ideia de “fatos alternativos”. A expressão obviamente gerou polêmica imediata, uma vez que quase ninguém acredita, de verdade, que haja alternativa para a realidade comprovável. Não há opção para o fato de o Sol se encontrar a 150 milhões de quilômetros da Terra, de nossa atmosfera ser composta de 78% de nitrogênio ou de o público presente à cerimônia de posse de Trump ter sido bem menor que o de Obama.

Embora as figuras políticas mintam com frequência, é inegável que a verdade ainda existe. A questão é: as pessoas ainda se importam com ela?

Leia também: Nem tudo o que cai na rede é fato (editorial de 7 de janeiro de 2017)

Deveriam. Precisam se importar. A história humana está repleta de exemplos de momentos em que a verdade foi deturpada ou omitida: como os relatos controversos sobre o navio de guerra Maine, afundado em 1898; a conspiração forjada em 1933, envolvendo o incêndio do Reichstag, que levou à suspensão brutal das liberdades civis, logo depois que os nazistas tomaram o poder na Alemanha; a falsa alegação de que o avião de reconhecimento U-2 pilotado por Francis Gary Powers, em 1960, não estava envolvido com a espionagem na União Soviética; as declarações falaciosas sobre o episódio de 1964, no Golfo de Tonkin, que serviram de pretexto para os EUA declararem guerra ao Vietnã; as repetidas manipulações durante o escândalo de Watergate, nos anos 70; as negativas de Bill Clinton, em 1998, sobre o relacionamento que mantinha com Monica Lewinsky; a falsa ideia de que Saddam Hussein escondia armas de destruição em massa, em 2003.

As patacoadas do presidente deram origem a uma reflexão há tempos necessária, ainda que desconfortável e indesejada, nas salas de redação. Ao mesmo tempo, nos força a sermos mais humildes, mais cuidadosos e mais dedicados que nunca em relação aos elementos básicos de nosso trabalho: a verificação dos fatos e a geração de histórias sem prestar atenção às críticas, seja de esquerda ou de direita.

Isso para mostrar que, através do nosso trabalho, a verdade ainda importa, sim.

David M. Shribman, editor-executivo do “Pittsburgh Post-Gazette”, está escrevendo um livro intitulado “A Short History of the Truth”.
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