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Felipe Lima

“A oligarquia e a burocracia supranacionais são inimigos genuinamente perigosos (...), mesmo se Putin e Trump concordarem em cooperar contra eles. O traço mais perigoso delas, mencionado por Putin em Valdai, não são seus recursos financeiros ou o acesso às alavancas de poder – embora isso seja muito importante. O aspecto mais perigoso é a capacidade dos Soroses e Kagans de aprender.” A passagem, de Ruslan Ostashko, editor do site PolitRussia (em russo), encontra-se no site Fort Russ (em inglês), dois veículos que compõem o núcleo ideológico duro do “putinismo”.

O Fort Russ proclama divulgar “verdades inquietantes” que não podem ser ditas por “fontes oficiosas sustentadas pelo Kremlin”. “Nós publicamos as narrativas originais, que aparecem mais tarde nesses veículos”, gaba-se o publisher. De fato, a narrativa de uma guerra das nações contra as tais “oligarquia e a burocracia supranacionais” é o esqueleto doutrinário em torno do qual se reúne o que o historiador Timothy Garton Ash batizou como “a Internacional dos nacionalistas”.

Steve Bannon, estrategista-chefe da Casa Branca e ex-editor do site Breitbart News, o preferido da direita nacionalista americana, tem um nome curto para o mesmo inimigo: “elite globalista”. A expressão circula, ritualmente, nos tuítes de Donald Trump; em discursos de Nigel Farage, o tribuno radical do Brexit; nos textos de Florian Phillipot, o vice-presidente da Frente Nacional francesa e lugar-tenente de Marine Le Pen; e nas invectivas do presidente turco Recep Erdogan contra a União Europeia.

Mas, afinal, quem é a “elite globalista”? Farage tem o hábito de sintetizá-la apelando a uma metonímia bifronte: “Barack Obama e Angela Merkel”. Os cavaleiros do nacionalismo a descrevem como a coleção formada pelas burocracias de instituições internacionais econômicas, de segurança e de integração (FMI, Banco Mundial, ONU e suas agências, União Europeia), pelos investidores globais, por partidos moderados de centro-direita e centro-esquerda, veículos de imprensa de referência, universidades e entidades científicas.

O advento de Trump cindiu os liberais-conservadores americanos que orbitam em torno do Partido Republicano – e uma vertente majoritária alinhou-se à nova ordem. Nos EUA, a adesão ao “trumpismo” implica a renúncia a artigos cruciais de fé ideológica. Como conciliar a crença na economia de mercado com um movimento populista que ergue a bandeira do America First? Como harmonizar a crença no livre comércio com um impulso protecionista baseado na ideia do “comércio justo”?

Na Rússia de Putin e, em grau menor, na Turquia de Erdogan, o antissemitismo já tem livre trânsito

O combate à “elite globalista” proporciona aos adesistas o álibi apropriado para o salto mortal ideológico. Ousados, os neotrumpianos explicam que é preciso distinguir a globalização do “globalismo”, isto é, da maléfica ação política da “elite globalista” – como se a integração mundial de cadeias produtivas pudesse dispensar as instituições e as redes que lhe servem de infraestruturas. Alheios às gargalhadas do público letrado, eles acusam a “elite globalista” (Obama, Merkel, Soros) de nutrir tendências “esquerdistas” e “socializantes”. Na mesma linha, insurgem-se contra universidades que pregam o respeito às liberdades civis e à diversidade cultural, confundindo isso com a doutrina do multiculturalismo, e entidades científicas que difundem informações sobre mudanças climáticas (uma lenda inventada pelos chineses para sabotar a economia americana, segundo Trump).

A “elite globalista”, contudo, não passa da versão renovada de uma narrativa mais que centenária: a conspiração dos Sábios de Sião. A história original, fabricada pela polícia política czarista, veio à luz em 1903, no início de uma onda de perseguições contra judeus na Rússia. Os Sábios de Sião, alta cúpula de judeus sem pátria, tramam para assumir o poder mundial, assumindo o controle das finanças internacionais e infiltrando-se nos governos, na imprensa e nos sistemas de ensino. O polvo opera, simultaneamente, em diferentes partes do globo e em esferas diversas da vida social, mas seus braços obedecem a um comando central.

A conspiração dos Sábios de Sião evoluiu por inúmeros caminhos, cruzando-se com as ideias das conspirações maçônica e comunista, até coagular-se em sua atual encarnação: o governo mundial da “elite globalista”. Suas raízes antissemitas jamais desapareceram. O texto publicado pelo Fort Russ intitula-se “Emmanuel ‘Rothschild’ Macron: a resposta globalista a Trump, Putin e Le Pen” e seu alvo explícito é o candidato presidencial francês de centro-esquerda, que trabalhou num banco de investimentos francês ligado ao Grupo Rothschild. No mesmo texto, o “Soroses” faz referência a George Soros, o diabo-chefe judeu; e o “Kagans”, a Robert Kagan, também judeu, analista americano de política internacional que rompeu com os republicanos em repúdio a Trump.

Os judeus da conspiração célebre cumpriam o duplo papel de inimigos externos e inimigos internos. Muito convenientemente, a “elite globalista” também exibe face dupla: na sua essência, é estrangeira e apátrida, mas sempre pode ser identificada entre os atores das políticas nacionais. Na Rússia de Putin e, em grau menor, na Turquia de Erdogan, o antissemitismo já tem livre trânsito. Na Europa Ocidental e nos EUA, pelo contrário, ele permanece contido à jaula do tabu. Por isso, tanto Le Pen e Farage quanto Trump e seu cortejo de adesistas liberais-conservadores sanitizam seus discursos, suprimindo as referências aos “Soroses e Kagans”. No lugar delas, como marcadores nativistas de fronteiras culturais, apertam as teclas islamofóbicas costumeiras: o “choque de civilizações” e o “terrorismo islâmico”.

Trump ainda resiste aos apelos de Bannon para deflagrar a guerra comercial contra a China. O motivo: seu maior temor é que a Bolsa caia sobre sua cabeça. A história se repete, sim — mas “apenas como farsa”.

Demétrio Magnoli é sociólogo.
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