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| Foto: Netflix/Divulgação

As normas federais e estaduais acirram cenário caótico da guerra por tributação sobre bens digitais entre estados e municípios. A legislação tributária brasileira é anacrônica e falha, sendo um dos principais entraves ao desenvolvimento da economia, impedindo que novos investimentos cheguem ao Brasil. Além disso, de forma totalmente dissociada da realidade mundial, há reconhecido excesso na tributação sobre o consumo. Estudos demonstram que os 10% mais pobres da população brasileira gastam 32% da renda em tributos, contra 21% dos 10% mais ricos. Se forem considerados apenas os tributos indiretos, a parcela mais pobre compromete 28% da renda com tributos, contra 10% da camada mais rica.

Soma-se a isso a complexidade do sistema tributário nacional, com 27 leis diferentes sobre ICMS e ao menos 5.570 normas de ISS dos municípios. No mais, a repartição de competências entre União, estados e municípios fomenta ambiente de incerteza e completa insegurança jurídica, especialmente quando se trata de conflito entre eles, que invocam, simultaneamente, o poder de exigir do contribuinte tributos em geral, não raro sobre um mesmo fato, o que gera o fenômeno da bitributação.

As peculiaridades do Brasil agravam ainda mais o problema na medida em que, ao contrário do que ocorre na Europa e nos Estados Unidos, a tributação indireta sobre consumo está dividida entre municípios, que têm competência para cobrar impostos sobre serviços, e estados, aos quais cabe tributar a circulação de mercadorias, tudo conforme nossa Constituição estabelece.

Ao contrário do que ocorre na Europa e nos Estados Unidos, a tributação indireta sobre consumo está dividida entre municípios

Ocorre, entretanto, que o mundo moderno e a tecnologia trouxeram mudanças significativas na vida das pessoas e impactaram diretamente nos antigos conceitos adotados pela nossa Constituição sobre mercadoria (bens corpóreos) ou serviços (obrigação de fazer).

A realidade torna cada mais evidente que estas premissas não se prestam a regular adequadamente a tributação dos chamados “bens digitais” ao haver falta de flexibilidade que permita tributar adequadamente as novas modalidades negociais oriundas da economia globalizada e feitas no ambiente virtual. Esse contexto favorece o acirramento da disputa por receitas entre estados e municípios.

Prova disso é a edição, no estado de São Paulo, do Decreto 63.099, publicado em 23 de dezembro de 2017 e passando a surtir efeitos a partir de 1.º de abril de 2018, possibilitando que o estado de São Paulo passe a exigir o ICMS do “site ou a plataforma eletrônica que realize a venda ou a disponibilização, ainda que por intermédio de pagamento periódico, de bens e mercadorias digitais mediante transferência eletrônica de dados”.

Este decreto, apesar de não mencionar expressamente, tem como fundamento de validade o Convênio ICMS 106/17, aprovado pelo Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz) e publicado em 5 de outubro de 2017, que trata sobre os procedimentos de cobrança do ICMS às “operações com bens e mercadorias digitais comercializadas por meio de transferência eletrônica de dados”, e que produzirá efeitos a partir de abril de 2018.

Em que pese o referido decreto não ter base legal, o que por si só enseja discussões de toda ordem quanto à legalidade da exigência tributaria em si, há outro problema de contornos ainda maiores, cujos efeitos são absolutamente nefastos para os contribuintes em geral, notadamente a bitributação que poderá surgir em razão do evidente conflito de normas.

Leia também: É possível cobrar ISS sobre Netflix e Spotify? (artigo de Valdirene Franhani, publicado em 18 de fevereiro de 2017)

Leia também: Tecnologia e concorrência (editorial de 30 de agosto de 2015)

Isso porque em 2016 foi publicada a Lei Complementar 157/2016, pela qual se alterou, em parte, a Lei Complementar 116/03, que trata do Imposto Sobre Serviços (ISS). A lei deu aos municípios a competência para cobrar e exigir ISS sobre o seguinte serviço: “1.9. Disponibilização, sem cessão definitiva, de conteúdo de áudio, vídeo, imagem e texto por meio da internet, respeitada a imunidade de livros, jornais e periódicos (exceto a distribuição de conteúdo pelas prestadoras de Serviço de Acesso Condicionado, de que trata a Lei no 12.485, de 12 de setembro de 2011, sujeita ao ICMS), o que atenderia o desejo dos fiscos municipais em tributar, pelo ISS, grandes empresas multinacionais que disponibilizam serviços de fornecimento de conteúdo via streaming.

Da forma como está posto, é inevitável que haja conflito entre estados e municípios na busca pela tributação dos bens digitais, pois, à luz das regras mencionadas acima, o mesmo fato – disponibilização de músicas ou filmes pela internet, por exemplo – pode dar ensejo à cobrança do ISS ou ICMS, dependendo exclusivamente da interpretação da autoridade fiscal respectiva, o que expõe contribuintes a uma iminente dupla tributação.

Este panorama é terrível para os negócios, pois a imprecisão e a insegurança jurídica favorecem companhias mal-intencionadas e fomentam a sonegação de impostos. De outro lado, pune severamente as empresas que procuram agir em conformidade com a lei, pois não há o mínimo de previsão ou planejamento, tornando tarefa impossível estabelecer quais serão os custos tributários envolvidos na atividade respectiva, o que no mundo atual é impensável.

É claro que todas as transações de bens e serviços são passiveis, em tese, de tributação; entretanto, também não é menos certo que existam regras claras que proporcionem o mínimo de segurança jurídica e legalidade aos contribuintes, até para que seja homenageado o princípio da neutralidade tributária de modo a não gerar desequilíbrios concorrenciais sobre as atividades econômicas.

A solução passa por uma reforma que altere drasticamente o sistema tributário, quem sabe unificando ISS e ICMS no IVA

É preciso destacar que as empresas de tecnologia, principais afetadas por essas alterações, faturaram ao longo de 2017 algo em torno de US$ 155 bilhões, segundo dados da Forbes. O que torna ainda mais premente a necessidade de se buscar soluções efetivas para que tais companhias continuem a gerar empregos e renda no Brasil.

O tema não é fácil; a solução, ou ao menos a mitigação, para tamanha desordem passa necessariamente por uma reforma que altere drasticamente o sistema tributário, quem sabe unificando ISS e ICMS no IVA (Imposto sobre Valor Agregado), com definições claras sobre repartição das receitas, definidas na Constituição entre estados e municípios. Todavia, inúmeras propostas neste sentido têm sido travadas ou simplesmente não evoluem, pois esta alteração pressupõe perda de poder (competência tributária), do qual prefeitos e governadores em geral não querem abrir mão.

Outras propostas surgem no campo acadêmico, como a elaboração de uma lei complementar nacional que regulamente para todos os entes (estados e municípios) as regras e limites que devem ser observados na tributação dos bens digitais, ou mesmo a criação de uma plataforma ou sistema de arrecadação nacional que padronizasse ao menos os recolhimentos a título de ICMS e ISS, sem alteração direta na competência. Com isso, os contribuintes teriam maior segurança jurídica e gastariam menos tempo no cumprimento de obrigações acessórias, outro ponto negativo do nosso sistema tributário.

Entretanto, enquanto mudanças não são aprovadas, novamente restará aos contribuintes prejudicados ou afetados pela bitributação a procura pelo Poder Judiciário, que também não tem uniformidade de entendimento sobre a matéria e sujeita os jurisdicionados a uma verdadeira loteria. Sem falar nos altos custos envolvidos com processos e toda a incerteza sobre um desfecho favorável.

Átila Melo Silva é advogado especialista em Direito Tributário.
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