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| Foto: Antonio Cruz/Agência Brasil

A anistia às vezes tem até seu sentido. Geralmente acontece nas transições de regime (de ditaduras para democracias, por exemplo). Quando um totalitarismo cai e se instala um autoritarismo, quando um déspota cai e se instala outro déspota, quando um autoritarismo colapsa e se instaura a democracia, quando um monarca cai e ascende outro de outra família, costuma-se perdoar parte da velha guarda que cometeu crimes no regime precedente (tortura, genocídio, censura, repressão das minorias etc). Seria até justo processar todos os envolvidos, mas seria politicamente complicado: tem gente demais envolvida, acabaria toda a classe dirigente capaz de governar, e se discutiria infinitamente questões que talvez é melhor deixar para trás. Mais que sanções e reparações, busca-se a reconciliação. Não é uma questão de princípios, mas pragmática. Não é o ideal, é um “second best”.

Houve anistia em quase todas as transições de regime, por exemplo: na coroação de Charles II, na Inglaterra; na ascensão ao poder de Napoleão; depois da Guerra Civil Americana; no Iraque pós-Saddam Hussein houve uma anistia para alguns de seus apoiadores; na Itália, vários fascistas e colaboradores do regime não foram processados pelos crimes cometidos durante a guerra, e também foi dada anistia aos crimes dos antifascistas; no colapso da União Soviética, vários comunistas foram perdoados e ficaram no poder com Gorbachov e até Yeltsin; o governo de Uganda ofereceu uma anistia para o criminoso de guerra Joseph Kony na tentativa de finalizar o derramamento de sangue; a recente tentativa de acordo entre as Farc e o governo colombiano previa (entre outras coisas) uma anistia; e, no Brasil, vários guerrilheiros e militares foram anistiados depois da ditadura. A ideia é focar no futuro, na reconciliação, na criação de um novo sistema político. A velha classe política se aposenta e muda o regime, as regras, as instituições, tudo.

Anistia com a manutenção do mesmo velho sistema não faz sentido algum

Nestas semanas, falou-se de anistia dos crimes de caixa dois e foi necessária uma certa pressão popular para fazer Michel Temer dizer que eventualmente a vetaria. Isso poderia até ter um mínimo de sentido, mas só se acontecessem duas coisas: se a maioria da atual classe política se afastasse do poder; e se mudassem as regras do jogo, daqui para a frente. É uma troca, um acordo: perdoamos o passado, mas vocês ficam no passado. Deixem o espaço para pessoas novas.

É necessária uma troca geracional, mas sempre consciente do fato de que só mudar as caras não adianta se não se mudam também as regras e os tipos de incentivos (não tem de mudar o motorista, tem de mudar o carro). É preciso mudar exatamente as principais regras que levaram à atual situação de patrimonialismo e corrupção difusa, todas aquelas regras que concentram o poder em poucas mãos, que aumentam a arbitrariedade, que geram privilégios e que afastam a classe política de nós, súditos: fim do foro privilegiado, fim do financiamento público aos partidos, fim dos crimes de opinião (usados sempre só para calar inimigos políticos), fim do imposto sindical, privatização de todas as empresas estatais (usadas como armas políticas) etc.

Concretamente, há só três mundos possíveis. Que ganhe a faxina, o Judiciário, o povo, o movimento anticorrupção, que passem as Dez Medidas sem serem desfiguradas; que ganhem eles, contra-atacando, subjugando o Judiciário e deixando tudo como está; ou uma via intermediária.

A esperança nos faz olhar para a primeira possibilidade, mas o quanto isso é provável? A classe política está já contra-atacando; tentou anistiar o caixa dois, uma nova lei sobre abuso de poder já entrou no pacote, no Senado tentou-se a votação urgente, várias propostas foram tiradas do pacote original, o Senado deu sinal de poder trabalhar até durante o recesso de Natal (e sempre podemos esperar alguma medida interessante enquanto o povo está distraído), na última hora poderia ainda haver novidades como a “emenda Amin”, que prevê um prazo máximo de seis meses para se processar políticos (depois disso, arquiva-se). O perigo é que eles ganhem e se volte à segunda hipótese. Ambas as opções podem levar meses e meses de luta intestina, acirrar a crise política e postergar as reformas econômicas tão urgentes. A Teoria dos Jogos mostra isso; neste momento, está se tentando limitar o poder da classe política sem dar nada em troca, colocando a oligarquia em um canto. A ela ficam só duas opções: aceitar, recuar e se submeter, ou contra-atacar e dobrar a aposta.

Anistia com a manutenção do mesmo velho sistema não faz sentido algum; perdoar para ficar com o mesmo também não. Aí é melhor vasculhar a fundo, mas, se este for o preço a pagar para a mudança esperada, talvez possa se fazer uma análise de custo-benefício. É uma questão de realismo e não de esperanças; a política é o mundo do possível e não do desejável.

Adriano Gianturco é professor de Ciência Política do Ibmec/MG.
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