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 | Daniel Castellano/Arquivo Gazeta do Povo
| Foto: Daniel Castellano/Arquivo Gazeta do Povo

No Brasil, o horror escancara-se dentro das salas das casas através de programas de televisão. Esses programas geralmente são exibidos quase no fim da tarde, talvez para poder capturar as pessoas voltando do trabalho, cansadas e irritadas com a frialdade da rotina. As multidões demoradas chegam em casa com fome e assistem às injustiças em imagem digital. Agora, quase às 18 horas, com aquela voz que parece empostada, mas não é – é a voz natural do apresentador, é ele mesmo quem fala sobre o caso de um rapaz que assassinou uma moça por ciúmes doentios. Este caso, assim como todos os outros casos que este programa mostra, é o que alguns chamam de “extremos”.

Muitos dos meus amigos intelectuais abominam programas dessa natureza, que mostram casos “extremos”. “Sensacionalista!”, eles bradam. Não dá para deixar de notar que são estes mesmos amigos intelectuais que vivem afirmando que nas redes sociais, como o Facebook, tudo é bonito e todas as pessoas são sempre boas, e por isso a rede vira um saco. Eles querem que se mostre algo de verdadeiro, de ruim, algo diferente da monotonia das fotos de sorrisos e declarações de amor faltantes de gramática básica. No Facebook, é um pedido, mas na televisão não pode. Eles detestam o tipo de programa de tevê que só mostra, nas palavras deles, “violência gratuita”.

Com atenção, então, acompanho o programa. A mãe da vítima é entrevistada, bem como os irmãos, a amiga. É de se chorar. Mas eu, assim como os meus amigos intelectuais, tenho o controle remoto nas mãos, posso mudar de canal. Penso, então, na mãe daquela vítima. Poderia ela mudar de canal na própria vida? Dar um rewind até o momento em que a tragédia não havia acontecido, e então viver calmamente com a filha viva? Para aquela mãe, que não consegue falar direito porque os soluços do choro não deixam, o caso não é extremo, não é sensacionalista. Não é algo que vemos na tevê e nos dispara aquele pensamento, pequeno e secreto, de que coisas como aquelas jamais acontecerão conosco. Para ela isso aconteceu, é a realidade. E é para sempre que o túmulo frio de um cemitério será a cama gelada em que a filha vai dormir através do eterno. Os mortos não têm redução de pena por bom comportamento.

Os mortos não têm redução de pena por bom comportamento

Tudo aquilo me deixa atônito, pormenorizado, sem notícias a dar para ninguém. Meus amigos intelectuais me falam sempre sobre a situação pobre e horrível que tais pessoas vivem, e que o ambiente é que cria o delinquente. Ironicamente, ou não ironicamente, vítima e homicida são do mesmo ambiente nessa história. É aí que surge a ideia de caráter das pessoas: dos pobres vai se tirando tudo, vai se tirando o ânimo em empregos difíceis e tediosos, vai se tirando o dinheiro em 100 mil impostos, e vai se tirando a capacidade de eles serem quem quiserem. Se o pobre consegue comprar um carro e uma casa, é porque o governo ajudou; não foi ele, o pobre, que quis e fez. Se cometeu um assassinato cruel e sem motivos, foi o ambiente o culpado e não ele, o pobre, que quis e fez. Fosse assim, não haveria ricos cruéis. E quão cruéis são as pessoas? Quanta crueldade está acontecendo agora neste país e neste planeta? Procuro saber mais e, procurando, encontrei a dona Molina.

Dona Molina é uma mulher de meia idade, viúva, com uma filha. Ela me contou a própria história: o marido foi assassinado em um assalto; os assaltantes queriam o carro e não titubearam em assassinar o marido dela, o senhor Molina. Era na rodovia, e o corpo foi deixado em um canto da mata que corre ao longo das ruas, e o carro foi levado. A filha tinha por volta de 5 anos. “Nossa vida estava apenas começando”, ela me diz, com calma, como se já tivesse pensado naquela frase mais de um milhão de vezes. A senhora Molina cuidou, então, não só da sua filha, mas também dos filhos do primeiro casamento do senhor Molina. Todos órfãos por um carro. De volta, ironicamente, ou não ironicamente, são aqueles mesmos amigos intelectuais que se esbaldam em críticas ao apego da sociedade por bens materiais, mas tais críticas não alcançam aquele que mata por um par de tênis ou por uma mulher tratada como um objeto de posse. “São casos extremos”, dizem eles.

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Pois os “casos extremos” chegam a mais de 50 mil, 60 mil, 70 mil pessoas por ano no país. Os “casos extremos” acontecem todos os dias, à luz do sol ou dos postes, e são televisionados, vistos, revistos e narrados em voz naturalmente empostada. O caso envolvendo a dona Molina não foi. “Eram outros tempos”, diz ela. “Não havia tantos programas de tevê assim.” O que me surpreende no relato da dona Molina é o fato de ela, em certos momentos, se colocar no local do falecido marido na hora exata do crime. Se por um lado, toda violência da tevê vira ficção não suportada por alguns, para ela, para a dona Molina, buscar se colocar no lugar do personagem real da própria vida é algo necessário. Ela me diz que imagina o momento em que ele viu a arma, em que ele sentiu as balas perfurando o corpo. Dona Molina ficava tentando imaginar o que ele pensou naquele momento, com aquela angústia de se sentir encurralado, sem saída, sem mais nada, e se esvaindo em sangue, e pensando, então, nela, na filha pequena, na frase “eu não deveria ter vindo”, e tantas coisas que alguém jovem construindo a vida poderia pensar enquanto morre por um pedaço de metal com rodas. Pode ser que, para o leitor, esta história também se passe por ficção, ou como tentativa barata de justificativa de um sistema penal cruel e horrível. No entanto, há outros leitores e, para eles, a história de violência aqui talvez tenha batido à porta. Sem ficção. Como um filme da própria realidade em que não se consegue mudar de câmera, pois a câmera são os próprios olhos.

No Brasil, os crimes simplesmente prescrevem. As mortes causadas por estes crimes é que não prescrevem

Há uma história proveniente dos países totalitários do Leste Europeu que diz que as autoridades escondiam todo e qualquer assassinato porque, afinal, eles viviam em um paraíso e no paraíso não há assassinos. Talvez gostassem de viver assim tantos dos meus amigos intelectuais, em um mundo em que a crítica fosse somente ao que eles querem criticar, como bebês que só comem a papinha doce e rejeitam a de vegetais. A dona Molina, que chora lágrimas secas por uma tragédia antiga, e a mulher da tevê que chora o rio da tragédia recém-nascida têm muito em comum. A ideia é de que um dia na vida delas a ideia de injustiça apareceu. De que se tem de pagar por coisas erradas, de que existem coisas erradas, de que as coisas erradas aconteceram com elas, mas que a justiça, a coisa certa, parece estar longe de acontecer. O assassino da filha da mulher que chora na tevê está solto. Os assassinos do senhor Molina estão todos soltos, alguns nunca cumpriram pena alguma e nunca cumprirão: o crime deles prescreveu. No Brasil, nesta nossa realidade, neste nosso espaço de tempo de vida, os crimes simplesmente prescrevem. As mortes causadas por estes crimes não prescrevem. O senhor Molina jamais voltará para casa para abraçar a filha de 5 anos, para dar conselhos aos filhos mais velhos e para presentear a mulher com a própria presença. Há anos, o senhor Molina é só ausência. Não estava lá quando a filha mais velha se casou, quando o filho conseguiu o primeiro emprego, quando a filha mais nova se formou na universidade. E é essa estrutura da ausência que se torna um espinho incômodo na vida dos vivos.

No Brasil, o horror escancara-se não só dentro das salas das casas, mas também lá fora, no mundo real. Não é somente por volta das 18 horas. O curso da violência aqui é integral e não dorme. Quem dorme literalmente para jamais acordar são as vítimas dos milhares de “casos extremos” de homicídio por ano no país. Aos olhos da dona Molina, quem poderia dizer “olhe, minha senhora, o teu caso é apenas mais um caso extremo”? Dentro das salas, há a possibilidade não só de mudar de canal, mas também de se desligar a tevê. Os próprios assassinos relatados aqui podem estar fazendo isso, tomando um café na sala de suas casas, naquele esquecimento forçado da culpa pelo que fizeram. Para eles, tudo talvez tenha já virado ficção. E a realidade dura daquela mãe cuja filha não mais existe, da dona Molina cujo marido não mais existe, quando a entrevista acaba, quem pode desligar?

Adrian Clarindo é professor e mestre em Linguagem e Identidade.
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