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 | Christian Robinson for The New York Times
| Foto: Christian Robinson for The New York Times

A impressão foi a de que mal limpara o gel do ultrassom da barriga e já tive de sair às pressas para procurar vestidinhos e livros para a minha filha ainda não nascida. Eu me vi em uma verdadeira missão, pois minha filha ia precisar de todos os vestidos cor-de-rosa e todos os livros com bebês marrons.

Achar roupinhas fofas foi fácil; literatura infantil com ilustrações de crianças de cor, nem tanto.

Histórias de meninos e meninas brancos e bichinhos, tipo, patos, não faltavam, o que imagino ser ótimo para os pais que tinham meninos e meninas brancos e patos – mas não ia dar muito certo para a minha bebê marrom, que passaria a vida procurando uma imagem semelhante à sua no cenário cultural popular, que simplesmente ignora as crianças parecidas com ela. Eu queria – na verdade, precisava – que ela visse sua beleza negra refletida na música e nas histórias com que esperava alimentá-la com tanta frequência quanto as refeições. Na minha casa, ela seria visível.

Até que uma amiga me ajudou a achar The Snowy Day, de Ezra Jack Keats, e o adorável “More More More”, said the baby. Meu enteado deu sua cópia de The Sun Is So Quiet, de Nikki Giovanni, para a irmã caçula. E acabei descobrindo a verdadeira arca do tesouro que é a Just Us Books, e os trabalhos de Andrea Davis Pinkney e Eloise Greenfield. Mesmo assim, as opções eram mínimas.

Os livros supostamente “diversos” que chegam às prateleiras, de variedade não têm nada

Isso foi há 20 anos; hoje, dar mais cor às páginas da literatura infantil se tornou tema de postagens de blogs e conferências literárias, graças a grupos como We Need Diverse Books e gente como Marley Dias, leitora voraz que, aos 11 anos, começou a campanha #1000BlackGirlBooks. Tanto falatório acabou produzindo alguns resultados: dos 3,5 mil livros para crianças publicados nos Estados Unidos no ano passado, 319 tinham personagens negros, segundo o Cooperative Children’s Book Center, o que representa uma leve melhora em relação aos anos anteriores; ainda assim, apenas 116 foram escritos ou ilustrados por negros.

Há outra história que deve ser contada aqui, que vai além dos números, mergulhando nas palavras: os livros supostamente “diversos” que chegam às prateleiras, de variedade não têm nada. Com poucas exceções, as mesmas histórias são contadas e recontadas, oferecidas às crianças como uma tigela de aveia seca e empelotada, só com uma pitada de açúcar mascavo escurinho por cima para descer melhor.

O livro infantil com personagens negros típico foca na degradação e na tenacidade do nosso povo. Dá para encher quase metade das prateleiras do Schomburg com histórias para crianças sobre o movimento dos direitos civis, a escravidão, jogadores de basquete, músicos e vários “primeiros”. E geralmente mostram o afroamericano como o prejudicado, o conquistador, o agitador e o super-herói que lutou por seu direito de ser reconhecido como ser humano completo.

Não me interpretem mal, eu aprecio esse tipo de leitura; nossa história merece ser discutida com todas as crianças, mas não dá para fazer minha menina viajar para uma terra de sonho com cenas de escravos tendo de receber ajuda para conquistar a liberdade, marchando através de um desfile de cães ensandecidos e mangueiras de fogo, ou como inspiração para Strange Fruit, de Billie Holiday – sim, porque existe um tomo dedicado a essa canção de protesto contra os linchamentos.

Leia também: E ele não disse “África” (artigo de Demétrio Magnoli, publicado em 29 de agosto de 2013)

Leia também: Monteiro Lobato atualíssimo (artigo de Belmiro Valverde, publicado em 27 de janeiro de 2013)

Na verdade, histórias sobre a beleza trivial que há em ser um serzinho de cor são escassas. Independentemente do que acredita o setor editorial, nossos pequenos não passam o dia pensando em Harriet Tubman, Martin Luther King e cadáveres negros balançando; ficam animados com o que a fada do dente vai deixar embaixo do travesseiro, ansiosos com a primeira viagem no ônibus escolar, curiosos para saber se podem encontrar dragões no armário.

Querem ler livros que falem de experiências do dia a dia, com personagens parecidos com eles. Como qualquer outra criança. As brancas também merecem – e precisam – ver personagens negros envolvidos nas mesmas experiências que enfrentam.

A verdadeira diversidade ressalta o prosaico, como um garotinho que sai logo após uma nevasca, e não o excepcional.

Um dos meus primeiros livros, Early Sunday Morning, sobre uma garotinha que supera seus medos enquanto se prepara para fazer o primeiro solo no coral, foi sumariamente rejeitado pelos editores quando o ofereci, em 2003. Eles não conseguiam se identificar com o ritual da família negra que vai à igreja, que começa no sábado, nem entender como as comunidades negras batistas se dedicam a educar as crianças de muitas outras formas além da leitura da Bíblia.

E devo presumir que não conseguiram ir além da cor da pele para assimilar a moral da história: a de que superar o medo é difícil, mas, com a ajuda da família, você pode aprender a ser corajoso. O conceito é universal, não importa a que raça pertença.

A verdadeira diversidade ressalta o prosaico, e não o excepcional

Tudo isso me levou a criar a minha própria editora do segmento. Publicamos Early Sunday Morning no ano passado, e agora muitos pais e filhos que o compraram e leram vêm me agradecer pela história.

E eu só tenho a agradecer os vários livros que publicamos recentemente, incluindo o de Vanessa Brantley-Newton, Grandma’s Purse, e o de Bunmi Laditan, The Big Bed. Todo mundo se identifica com os temas aqui – a ligação mágica entre filhos e netos, a criança exigente que toma conta da cama dos pais. A questão da cor não influi na história, mas é importante como referência para as crianças negras.

O sucesso desses livros prova que pais, professores, bibliotecários e crianças querem histórias que exaltem o fator humano e as experiências diárias da garotada negra e suas famílias. Certamente há demanda – basta ver a empolgação que cerca filmes como Pantera Negra e Uma Dobra no Tempo, ambos com protagonistas negros –, ainda que parte da indústria tenha dificuldade em reconhecê-la.

As mudanças estão aí. Este ano, Jacqueline Woodson, cujas histórias sobre a vida negra lhe renderam prêmios prestigiados, foi promovida a embaixadora nacional da literatura infanto-juvenil. E vários grupos editoriais já anunciaram editoras de “diversidade” que, segundo garantem, vão preencher o vazio do setor.

Porém, se os mesmos profissionais das mesmas editoras forem contar as mesmas fábulas sobre Harriet Tubman, Martin Luther King, Muhammad Ali e como os negros “superaram”, quase sempre escritas e ilustradas por escritores e artistas brancos, bom, aí teremos perdido mais uma oportunidade de estimular e desenvolver nossas crianças.

Elas merecem essa chance.

Denene Millner é editora da Denene Millner Books, do grupo Agate Publishing, e autora de “Early Sunday Morning”.
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