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| Foto: Marcelo Andrade/Gazeta do Povo

As manifestações públicas vivenciadas no Brasil em junho de 2013 foram amplamente reconhecidas como uma novidade política; manifestações de massa, plurais, com enorme visibilidade midiática e de efeitos políticos consideráveis. Desde então, movimentos de rua têm se tornado cada vez mais frequentes e diversificados.

De decisiva importância foram as estratégias de organização e chamamento por meio das redes sociais, provocando um surpreendente impacto de curto e médio prazo: redução na tarifa do transporte coletivo, mudanças no comportamento eleitoral, inclusão na pauta oficial das políticas de gênero e algumas medidas anticorrupção.

Semelhanças com movimentos ocorridos em outros países podem ser reconhecidas: citem-se a “Revolução dos Panelaços”, na Islândia, em 2009; o Occupy Wall Street, em Nova York, em 2011; o “Geração à Rasca”, em Portugal; e o movimento “Indignai-vos” na Espanha, todos esses em 2011; e as manifestações de ambientalistas contra o governo na Praça Taksin, na Turquia, em 2013 – neste último caso, inclusive, os manifestantes invocaram o Brasil como exemplo. Aí estava representada, segundo os observadores dos acontecimentos de 2013, a reemergência das camadas populares como atores políticos.

Já nos anos 2015 e 2016, um bom número de manifestações assumiu outra direção, centralizando suas reivindicações no combate à corrupção, bem como, em alguns casos, no apelo a um governo forte e decisionista (termo empregado em tempos de guerra, segundo o qual a ordem deve ser restabelecida pela força e pelo alto).

Presencia-se o exaurimento das energias utópicas, tanto progressistas como conservadoras

Sejam estas ou aquelas, o ativismo dos manifestantes tem sido interpretado como um retorno das ideologias que informaram a política desde a Revolução Francesa até a queda do Muro de Berlim, cujo princípio era o conflito entre a direita e a esquerda – a primeira, acusada por seus detratores no Brasil como neofascista ou golpista; a segunda, acusada de comunista e conivente com a corrupção e com o desrespeito aos costumes da família tradicional.

A meu ver, conquanto a linguagem dos movimentos de rua seja inspirada pela polarização direita versus esquerda, é um equívoco pensá-la com as mesmas ferramentas teórico-explicativas das ideologias que desenhavam o futuro a partir de processos revolucionários, evolucionários ou reformistas (respectivamente oriundos do marxismo, do positivismo e do liberalismo). Primeiro, porque tais coletivos não apresentam ações propositivas de médio e longo prazo; segundo, porque prescindem de líderes carismáticos; terceiro, porque ignoram ou mesmo desprezam os partidos políticos, vistos até então como agremiadores das vontades políticas. São manifestações autônomas, pouco disciplinadas e autodefinidas pela falta. Prescindem também de instituições que lhes deem amparo legal; finalmente, não são referendadas pelo voto, o que garantiria, em parte, sua legitimidade.

Por estes motivos, segundo a minha compreensão, as mobilizações precisam ser analisadas como resultado de uma nova conjuntura, que pode ser compreendida como “sociedade pós-democrática”.

Da parte do Estado, segundo Rubens Casara, trata-se de um momento em que “o poder econômico e o poder político se aproximam, e quase voltam a se identificar, sem pudor (e, nesse particular, pode-se falar em uma espécie de regressão pré-moderna). Na pós-democracia o significante ‘democracia’ não desaparece, mas perde seu conteúdo, ou seja, não há mais um modelo de Estado no qual existe participação popular para a tomada das decisões políticas somada ao esforço dos agentes estatais para a concretização dos direitos e garantias fundamentais. Ao contrário, na ‘pós-democracia’ o que resta da ‘democracia’ é um significante que serve de álibi às ações necessárias à repressão das pessoas indesejadas, ao aumento dos lucros e à acumulação. (...) De fato, o ‘pós-democrático’ é o Estado compatível com o neoliberalismo, a transformação de tudo (inclusive das mentalidades) em mercadoria, na verdade um ultraliberalismo econômico que necessita de um Estado Penal cada vez mais forte, de uma estrutura estatal voltada à consecução dos fins desejados pelos detentores do poder econômico”.

Da parte da sociedade, presencia-se o exaurimento das energias utópicas, tanto progressistas como conservadoras, o que é favorecido pelo aumento do desemprego estrutural e consequente aumento da miséria e arrefecimento da solidariedade. Vivemos um momento em que mudanças tecnológicas se tornam enormemente aceleradas, tanto quanto o ritmo de trabalho é intensificado e especializado. Ademais, a internificação estrutural e cultural substitui a convivialidade e fragiliza as identidades de pertença (tais como a religião), de classe e de compartilhamento do espaço público – este, cada vez mais desterritorializado e fragmentado.

A luta por reconhecimento se reduz à prova de desempenho, traduzida como sucesso. Os governos se limitam a reprimir a violência dos excluídos ou fornecer ajuda humanitária mínima que propicie a sobrevivência destes – cite-se o caso dos Estados Unidos, onde o número de encarcerados subiu, de 2001 para 2009, de 48 mil para 64 mil pessoas, e o orçamento para este setor elevou-se de US$ 36 milhões para US$ 167 milhões. Por sua vez, o número de beneficiários de cupons alimentares aumentou na ordem de 33% de 2009 até hoje, correspondendo agora a 15,2% da população total.

Os coletivos, por sua vez, praticam uma política que não somente fica à margem da esfera institucional, mas lhe é adversa. Negam que o Estado seja sinônimo de serviço público, antes, instrumento de dominação. Talvez seja por isso que determinados slogans do neoliberalismo sejam aceitos pela assim denominada “nova direita”, mas não estou certa de que tal ideologia corresponda ao que efetivamente querem os manifestantes, pois eles não condenam a existência do Estado, mas sua ineficiência. Tampouco as reivindicações ditas de esquerda são pautadas pelos ideais socialistas dos séculos 19 e 20, que aspiravam à conquista do Estado para fazer funcioná-lo em favor dos trabalhadores; seus militantes limitam-se a reivindicar melhores serviços de educação, de saúde e de ajuda social aos desvalidos.

Hoje, no Brasil, desde o início da gestão Temer, podemos identificar alguns denominadores comuns entre os movimentos de rua, mesmo que se digam oponentes entre si: exigem o fim da corrupção, defendem um Estado forte, disputam seguidores que se tornem identificados com um pensamento único, e ambos cultivam o ódio, numa demonstração de intransigência e pouca disposição ao diálogo.

Os protestos sugerem novas iniciativas, mas as instituições políticas e o poder econômico as obliteram. Os discursos são embaralhados por múltiplas e difusas motivações, dificultando um consenso mínimo que reúna condições de exercer efetiva pressão política.

Até o momento, quem saiu vitorioso foi o voto conservador, em reação, sim, ao Partido dos Trabalhadores, desautorizado como agente de renovação; contudo, e não de forma excludente, uma parcela da população que voltou contra os políticos “profissionais” e que se absteve de votar está reclamando o restabelecimento da ordem e da segurança, mesmo que a liberdade de expressão seja relativizada ou mesmo sacrificada – inclusive aquela que tornou possível os diversos movimentos “vem para a rua”.

Marion Brepohl, historiadora, é professora da Universidade Federal do Paraná e bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
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