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Para evitar o noticiário, tenho passado as últimas semanas limpando o porão de casa. É o cômodo de que menos gosto, depósito para tudo o que está quebrado, é inútil ou deprimente. E uma vez que minha mãe se desfez de muita coisa quando meu pai morreu, está lotado não só de coisas minhas, mas de duas gerações de lixo acumulado, à espreita, esperando.

A esteira e os pesinhos vivem ali. As caixas de fotos e recibos que lotavam os armários do meu pai estão todos lá. Como também os esquis cross-country, o contrato de opção de um livro que nunca foi adaptado. Tem um negócio que parece importante. E elétrico. Para que serve? Não tenho a mínima ideia. E os papéis do meu divórcio, o reprodutor de DVD e o berço desmontado que achei, durante algumas semanas muito felizes, há vários anos, que poderia usar de novo.

É absurdo se sentir agradecida a um homem por agir com um mínimo de decência

O porão é o lugar onde colocamos as coisas que não queremos mais ver, mas das quais não conseguimos nos desfazer; aquilo de que não precisamos, mas não podemos jogar fora. Ando pensando em porões, reais e metafóricos, principalmente por causa da enxurrada de revelações das últimas semanas, que começou com o caso Harvey Weinstein e que não dá sinais de que vá minguar tão cedo.

O movimento #MeToo forçou praticamente todas as mulheres que eu conheço a descer a escadaria do porão interior para avaliar a própria história. Todas nós temos histórias. As minhas são bem típicas, no contexto geral, nem tão ruins assim. Teve a do professor do ensino médio que me beijou e disse que me amava; esquisito. O garçom no meu primeiro emprego em um restaurante que ficava me cercando pelos cantos e se esfregando em mim. Péssimo.

Teve todos esses caras, ao longo dos anos, que disseram, gritaram ou sussurraram coisas enquanto eu estava por aí, pelo mundo, fazendo compras ou esperando o ônibus – mas eles são apenas parte do ruído de fundo na vida de toda mulher, o preço de se ocupar um corpo feminino. Ah, teve o colunista do jornal semanal onde eu era estagiária, que ia comigo para o depósito quando eu tinha os braços lotados de arquivos de edições antigas e ficava esbarrando nos meus seios ao passar por mim. O pior não era nem o toque, mas a maneira marota com que ele me olhava depois. “Agora temos um segredinho”, parecia dizer. “Um pacto. Vou continuar fazendo isso e você vai continuar caladinha porque eu sou poderoso e você é totalmente substituível.”

Foram coisas que aconteceram. No contexto geral de horrores, até que não foi tão mal. Não passo todos os dias atormentada pelas lembranças. De fato, passo meses, até anos, sem pensar em como a barba daquele professor raspou meu rosto ou o hálito do garçom enquanto ele resfolegava no meu ouvido. Essas experiências, porém, individual e coletivamente, dizem muito. Sobre o meu valor. Sobre o lugar da mulher. Está tudo no porão; está tudo ali, mas escondido. Não é nada que eu queira ver – mas como os recibos das devoluções de Imposto de Renda de dez anos atrás e o meu Macintosh Classic antigo, também não posso jogar fora.

Nossas convicções: A valorização da mulher

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Também conheço muitos homens bons. Nos dez anos que trabalho como repórter, e durante os períodos ocasionais em que cubro Hollywood, há aqueles que me contrataram, supervisionaram e trabalharam comigo que sempre foram convenientes, gentis e encorajadores. Assim, em datas próximas ao Dia de Ação de Graças, quando começo a pensar no momento em que todos nos sentamos à mesa para agradecer, e aquilo por que realmente sou grata neste ano tão terrível, minha mente se volta para esses caras. Os treinadores que não apalparam, nem passaram a mão; os professores que ensinaram as meninas e não fizeram delas alvo sexual. Há muitos homens bons e por eles só tenho que agradecer.

Só que agora eu tenho filhas. Duas. A mais velha tem 14, a mesma idade que a nadadora campeã Diana Nyad tinha quando seu treinador começou a abusar dela. Que Leigh Corfman quando um procurador distrital chamado Roy Moore começou a cantá-la. Olho para as minhas meninas – confiantes, bravinhas, irritantes, hilárias – e só fico pensando se alguém já tentou alguma coisa. Se sim, será que o mundo mudou a ponto de fazê-las saber, com absoluta certeza, que podem me contar sabendo que acreditarei nelas?

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É de enlouquecer. É absurdo se sentir agradecida a um homem por agir com um mínimo de decência. Nenhuma mulher, seja CEO ou camareira de hotel, deveria se sentir grata pelos caras que não a apalparam, agarraram ou foram maliciosos. Não deveria haver cookies e tapinhas nas costas para aqueles que não confundem embriaguez com consentimento ou os que não acham que o maior sonho da secretária é vê-lo saindo pelado do chuveiro. As mulheres não tinham que agradecer nada disso. Deveríamos poder dar esses fatos como favas contadas.

Por isso, neste Dia de Ação de Graças, minhas filhas e eu catamos cranberry no pé. Decoramos a mesa e as meninas tiraram uma comigo. Assamos um peru e fizemos purê de batata doce – e em vez de reconhecer os homens que, corajosos e nobres, conseguiram conter as próprias mãos, agradecemos às mulheres.

Aly Raisman e McKayla Maroney. Leigh Corfman e Beverly Young Nelson. Diana Nyad. Rose McGowan e Ashley Judd. Lupita Nyong’o e Annabella Sciorra. Kitti Jones, a última a acusar R. Kelly – e, é claro, Anita Hill, que foi submetida ao desprezo e à humilhação geral, mas que abriu a porta do porão e deixou entrar ali os primeiros raios de luz.

Manter o bom comportamento no ambiente de trabalho não deveria ser tão difícil. Defender seus princípios com unhas e dentes? Aí é mais complicado. Em vez de agradecer aos homens por fazerem o mínimo, demos graças às mulheres que fizeram algo extraordinário: contaram suas histórias, apesar das consequências, apesar do preço.

Jennifer Weiner é autora, mais recentemente, do livro de memórias “Hungry Heart” e contribui regularmente para a coluna de opinião.
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