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| Foto: Fleur Suijten/Free Images

“Posso pegar este aqui?”, perguntei para a minha mãe, em setembro passado, sabendo que ela diria sim. Aliás, eu já tinha até vestido o cardigã cinza elegante com uma estampa de minúsculos diamantes. Precisava de alguma coisa legal para usar sobre a blusa sem manga que ela já tinha me dado e achava que meu moletom com capuz não combinaria com a entrevista de emprego que teria naquele mesmo dia.

“Pode ficar com ele”, disse ela, da cama.

Perguntei “Tem certeza?” só por educação, pois sabia que sim. Ela não ia vestir o cardigã nem naquele dia, nem em nenhum outro. Na verdade, eram grandes as chances de ela nunca mais voltar a usar as roupas que estavam no closet. Minha mãe estava em seu “uniforme” costumeiro, uma camiseta velha com um tema vegano e calça de moletom com um furo no bumbum – seus “trapos” adorados –, que vinha usando praticamente todo dia desde que recebera o diagnóstico do câncer em estágio 4, dez meses antes. Não havia necessidade de dizer, mas nós duas sabíamos que seus dias de usar cardigãs bacanas eram passado.

Houve ocasiões, ao longo desses meses todos, nos quais teve de se vestir para ser vista pelo mundo exterior – as idas às casas das minhas irmãs para que pudesse ver os netos, um almoço de aniversário que lhe organizamos em abril, uma excursão a uma exposição de arte na pré-escola do meu sobrinho, com muita pintura a dedo e usos incrivelmente criativos para o macarrão. Nesses casos, ela usava sua roupa “boa” tradicional: uma blusa estilosa, um cardigã longo, jeans, bota de cano curto e um lenço colorido na cabeça para cobrir a careca que revelava só em casa.

Assim que voltava para sua privacidade, mais que depressa se trocava e voltava a usar os trapos. Ela gostava de se arrumar, mas, conforme ia piorando, mais confortável fazia questão de ficar.

Ter mais roupas era bom, mas o câncer da minha mãe era péssimo

Quando setembro chegou, as únicas saídas da minha mãe eram as visitas ocasionais ao pátio na parte de trás da casa, para se sentar ao sol da tarde, e mesmo essas começaram a escassear. Ficava contente em poder passar os dias no sofá – que não demorou a ser substituído por uma cama de hospital.

Estava morando com ela havia quase um ano e já sabia que as roupas dela todas me serviam (éramos praticamente do mesmo tamanho), mas só naquele momento me ocorreu que a doença dela basicamente dobrava o meu guarda-roupa. Obviamente, eu tinha sentimentos contraditórios a respeito dessa ideia: ter mais roupas era bom, mas o câncer da minha mãe era péssimo. É bem provável que haja uma palavra alemã que descreva esse sentimento, mas não sei qual.

Consegui o emprego para o qual fiz a entrevista, o que a deixou muito feliz. Estava ficando mais debilitada. Tinha dias em que nem nos falávamos, pois ainda estava dormindo quando eu saía cedo para trabalhar e quando eu voltava à noite. Fui investigar o closet dela em busca de outro cardigã. Peguei quatro.

Ela cada vez comia menos; estava sempre com dor. Eu lhe levava os comprimidos e passava creme nas pernas. Um dia, só de capricho, vesti uma de suas camisas sociais, azul clarinha. Não era bem meu estilo – eu preferia mais uma camiseta cinzenta e jeans –, mas usei mesmo assim.

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As visitas das enfermeiras se tornaram mais frequentes; minha mãe estava tendo dificuldade em se alimentar. Logo depois disso ela já não conseguia mais se levantar, nem mesmo para usar o cantinho que arrumamos, ali mesmo, quando passou a não conseguir ir mais ao banheiro. Uma tarde, dei uma espiada no seu closet, atrás de um jeans preto, porque o meu tinha se desintegrado. O dela me servia perfeitamente. Experimentei mais oito, todos caíram feito uma luva. Dobrei tudo e desci com a pilha para o meu quarto.

Estava ficando cada vez mais difícil manter uma conversa com ela sem eu me perguntar se conseguia entender o que eu estava falando; logo passou a ser impossível. Eu me agarrava ao conteúdo de seu closet como se fossem suas últimas chances de sobrevivência; se eu desse vida ao seu jeans, talvez, de alguma maneira, por mágica, essa energia pudesse ser transferida. As roupas que eram uma parte dela agora eram um pedaço de mim, pois a distância entre nós duas ia ficando cada vez menor.

Ela parou de respirar em uma manhã de novembro, minutos antes de eu sair para trabalhar. Tirando as peças que já tinha pegado, seu closet continua intacto. Ainda não tive coragem de fazer a faxina. Ver suas roupas – arrumadas, coloridas, penduradas em cabides chiques de veludo – me dá a impressão de fazê-la viva, como se dali a um segundo ela aparecesse de pé na minha frente para escolher uma blusa bonita para sair.

Ainda dou uma busca lá de vez em quando, procurando algo que ela costumava usar sobre o próprio corpo para cobrir o meu.

Usei o mesmo cardigã da entrevista para seu funeral – e assim ter uma pequena parte dela comigo quando o resto já não pode mais estar.

Ari Scott é roteirista de programas de televisão.
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