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| Foto: Robson Vilalba/Thapcom

A crise da mobilidade urbana está presente no cotidiano das grandes cidades brasileiras de forma cada vez mais contraditória: de um lado, o crescimento exponencial da frota de veículos; de outro, um transporte público caro e de má qualidade, cujo reflexo recai sobre a redução progressiva da mobilidade dos mais pobres.

Segundo o Observatório das Metrópoles do Ippur/UFRJ, o aumento da frota de veículos automotores no país na última década (138,6%) foi dez vezes maior que o aumento da população brasileira (12,2%). Esse aumento advém do modelo rodoviarista que ancora a política de mobilidade no país, e pode ser ilustrado pela evolução da sua taxa de motorização – número de automóveis a cada 100 habitantes –, que passou de 14,2 em 2001 para 22,7 em 2011 e para 29,7 em 2016.

Os impactos socioambientais decorrentes desse cenário de crise têm inviabilizado a vida urbana: nas 15 maiores regiões metropolitanas, 20% da população leva mais de uma hora no deslocamento casa-trabalho; passageiros dos ônibus esperam tempo demais nos pontos e sofrem com a lotação; extensos congestionamentos são constantes; pedestres e ciclistas não encontram condições seguras e eficientes de circulação.

Em consonância com os planos diretores municipais – exigidos pelo Estatuto da Cidade a partir de 2001 para municípios com mais de 20 mil habitantes –, o Ministério das Cidades fez também a exigência dos planos municipais de mobilidade (PlanMob’s), sob pena de impedimento de envio de recursos federais destinados à mobilidade urbana para esses municípios.

Por que ainda privilegiamos essa perspectiva tradicional sobre a mobilidade?

Entretanto, ainda visualizamos uma abordagem tradicional da mobilidade urbana que se baseia em obras de infraestrutura com foco no aumento da velocidade do tráfego e atendimento a uma demanda crescente de automóveis em escala urbana, a fim de minimizar o tempo de deslocamentos individuais. Diferentemente, a mobilidade urbana sustentável deveria preocupar-se de modo interescalar na gestão das demandas de todos os modos de transporte, na seguinte hierarquia decrescente: pedestres, ciclistas, transporte público coletivo e, por último, transportes motorizados individuais, além de contribuir para a minimização dos impactos vinculados às mudanças climáticas.

Vê-se, ainda, a proliferação de viadutos e trincheiras para otimizar o escoamento do tráfego nas cidades como soluções isoladas para transposição de vias de tráfego intenso ou para a conexão de áreas ou bairros segmentados por rodovias. A questão sobre a qual devemos refletir é a seguinte: por que ainda privilegiamos essa perspectiva tradicional sobre a mobilidade, se a Lei de Mobilidade Urbana de 2012 aponta uma série de princípios que nos conduzem ao conceito de mobilidade urbana sustentável?

O projeto da Linha Verde nasceu como resposta à conversão da rodovia BR-116 de alto risco em avenida urbana capaz de integrar-se à cidade. Embora seja inegável a articulação que a Linha Verde proporcionou entre os bairros longitudinalmente conectados a ela, por outro lado, a integração em sentido transversal ainda se vê um tanto aprisionada a seu passado: uma via que em muito se comporta como uma via expressa de alta velocidade, inviável na escala do pedestre. Atualmente, mesmo para o trânsito veicular, a Linha Verde apresenta sobrecarga de fluxo que não encontra sua solução total apenas com a inserção de trincheiras.

Leia também: Automóvel: amigo ou vilão da mobilidade urbana? (artigo de Roberto Cerdeira, publicado em 7 de abril de 2017)

Leia também: O que Curitiba (ainda) tem para ensinar? (artigo de Ademar Batista Pereira, publicado em 21 de abril de 2015)

É verdade que, em um primeiro momento, as trincheiras parecem soluções diretas para esse tipo de situação. Entretanto, é preciso apartar-se da nossa posição como motoristas para colocar as coisas em maior perspectiva. Se pensarmos na qualidade dos espaços urbanos que “restam” no entorno de trincheiras lembramos que são, em geral, contextos hostis, não resolvidos na escala do desenho urbano específico que impacta diariamente o cidadão. As trincheiras, quando não planejadas e articuladas desde uma perspectiva macro de conectividade na cidade, passando pela escala média dos bairros e regionais, chegando à menor escala da vida cotidiana do cidadão, não passam de respostas a efeitos do congestionamento. Essas respostas deveriam ser elaboradas de forma a contemplar um planejamento transversal das escalas, preocupado com os rebatimentos não apenas na mobilidade veicular, mas nos diversos aspectos da vida urbana: a qualidade do transporte público, do conforto do ambiente construído, da segurança de caminhabilidade e do ciclista etc.

Se a trincheira comparece no discurso da gestão como estratégia sustentável para a mobilidade urbana, vale lembrar que ações e projetos realmente sustentáveis incluem um pensamento holístico, buscando minimizar os danos ao meio e assegurando que o uso futuro não será negativamente afetado. Uma vez que trincheiras correspondem a projetos de infraestrutura praticamente irreversíveis no tecido urbano, uma pausa em torno da questão custa menos agora do que após implantada.

Enquanto Curitiba aposta na construção de trincheiras e viadutos para melhorar a conectividade e a mobilidade interbairros, algumas cidades percorrem o caminho inverso, pondo abaixo vias expressas com o objetivo de resgatar a qualidade de vida para a população, criando soluções baseadas em modais de transportes integrados, na escala do pedestre e no resgate da biodiversidade ecológica urbana. Seul e Madri realizaram, respectivamente, a revitalização dos rios Cheonggyecheon e Manzanares com parques lineares; o Rio de Janeiro optou pela humanização da área portuária com a implosão do elevado no Porto Maravilha.

Viadutos e trincheiras podem assegurar maior fluidez ao tráfego motorizado e grande visibilidade política, mas também podem causar cicatrizes socioespaciais irreparáveis nos tecidos urbanos, que precisam, no mínimo, ser debatidas com as populações atingidas para que, na medida do possível, os impactos ambientais e de vizinhança sejam mensurados e adequadamente resolvidos para a efetiva qualidade nos espaços de vivência do cidadão.

Andrei Crestani, Marta Gabardo e Sylvia Leitão são arquitetos e professores do Laboratório de Cidades da PUCPR.
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