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No debate sobre o "casamento" homossexual a que hoje assistimos em diversos parlamentos e tribunais, muito se argumenta que sua vedação legal importaria em discriminação social. O modelo matrimonial da tradição romano-germânica e do sistema da common law, no entanto, não tem a pretensão de dar proteção a simples ligações de amizade, tratos assistenciais, vínculos sexuais ou, na linguagem atual, laços afetivos. Vai além e excede em muito essas vivas realidades. Busca efetivar um estilo de vida que assegure a estabilidade social e o recâmbio e a educação das gerações vindouras.

Nesse debate, é inevitável debruçar-se sobre o propósito do matrimônio. Algumas perguntas devem ser respondidas antes de se tomar qualquer conclusão politicamente correta. O que é mais importante para a gênese do tecido social: os matrimônios, como sempre foram estabelecidos, ou as parcerias homossexuais? Em qual deles reside o princípio autoconstitutivo e, digamos, genético da sociedade? Em qual deles os novos cidadãos crescerão melhor, de modo a estruturar-se e ampliar, de modo natural, as próprias personalidades? Em que medida cada um deles contribui para o incremento do bem comum? A equiparação da parceria homossexual à condição matrimonial não seria um privilégio? A manutenção do statu quo do matrimônio não seria uma discriminação contra a parceria homossexual?

Deixo várias perguntas sem resposta, para reflexão do leitor. Mas pretendo responder a última delas, porque pertence a um rol de argumentos de razões públicas. Nessa hipótese, não me parece que a proibição de que homossexuais possam contrair matrimônio – e não falo da união estável – implique numa discriminação estrita ou mesmo numa negação de direitos.

O ponderado fator de discrímen reside justamente nos elementos objetivos que o Direito exige para que um fato da vida seja dotado de juridicidade matrimonial. Quando o Direito distingue um vínculo (baseado numa complementariedade essencial e existencial voltada para a fecundidade e para o bem comum) de outro vínculo, assentado numa complementariedade que se resume à afetividade, ele deve dar a cada um o seu, porque cada um move-se em órbita própria: ao primeiro, a condição de matrimônio; ao segundo, a de pacto civil.

Ao dar a cada um o seu, o Direito faz justiça. Não segundo essa visão bem tosca transmitida na graduação pelo positivismo jurídico, correspondente ao fetichismo legal. Nem segundo essa noção sociológica em que o legislador reduz-se a um notário, uma espécie de chancelador normativo de fatos sociais. Mas segundo uma noção perene de justiça e, por isso, sempre atual: a noção de que iguais devem ser tratados igualmente e os desiguais, desigualmente, na exata proporção da desigualdade.

Discriminar é separar, distinguir. Continuamente separamos e distinguimos. Diferenciamos entre pessoas boas e ruins, livros agradáveis e desagradáveis, o nosso time e o time (normalmente no diminutivo) alheio. Cada vez que elegemos algo, discriminamos inconscientemente, pois, ao optar por isto, descartamos aquilo. Discriminar é inevitável. Apenas é reprovável a discriminação arbitrária, aquela que carece de qualquer fundamento ontologicamente objetivo, da qual o "casamento" gay está fora, porquanto chamar cada coisa pelo devido nome é uma justa discriminação. Nesse caso, semântica e social.

André Gonçalves Fernandes, juiz de direito, é professor da Escola de Direito do Instituto Internacional de Ciências Sociais (Iics).

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