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O sistema de Justiça criminal é seletivo e essa afirmação não é uma hipótese. É a consequência da análise empírica realizada especialmente a partir das conquistas metodológicas da Labeling Approach (Teoria do Etiquetamento Social), nos anos 1960, e da conclusão lógica e objetiva de que para o Estado é impossível apurar todas as irregularidades praticadas dentro do seu limite territorial e punir seus autores.

A questão da seletividade, no Brasil, importa por ser fator de reprodução de desigualdade da Justiça. Afinal, se a lei é para todos, por que há preteridos? Um bom exemplo é encontrado no artigo de Salo de Carvalho “O encarceramento seletivo da juventude negra brasileira: a decisiva contribuição do Poder Judiciário”. Para o autor, a análise panorâmica do sistema carcerário nacional permite não apenas sugerir uma atuação seletivamente racista do Judiciário. Salo enfrenta os dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), de acordo com os quais um total de 64,7% do contingente carcerário brasileiro é afrodescendente.

A proposta de novas leis parece repetir uma saída comum: a falácia iluminista

Para demonstrar a seleção sobre os mais vulneráveis que sofrem a ação do Estado, tem-se focado o resultado da ação dos agentes públicos perante determinados grupos, a exemplo de afrodescendentes e jovens da periferia. Porém, essa mesma técnica não pode ser aplicada de maneira isolada, ou, pelo menos, não mostrará a mesma eficácia nos casos de crimes de corrupção. Na entrevista oferecida ao Valor Econômico em 22 de junho, o procurador da força-tarefa da Lava Jato Deltan Dallagnol disse que o pacote de leis conhecido como “10 Medidas Contra a Corrupção”, de iniciativa do Ministério Público Federal (MPF), vai ajudar a aumentar a taxa de punição contra a corrupção no Brasil, atualmente em torno de 3%.

Se o propósito é o encarceramento, o sucesso da proposta é plausível. É sabido que leis rigorosas, como a Lei de Drogas, promoveram aumento nos índices de prisões e condenações. E no caso da corrupção, em que a criminalidade é mais sofisticada que no geral, será mesmo um puro problema de ordem legislativa? Evidente que não, considerando a inequívoca seletividade do sistema. Com isso, a proposta de novas leis parece repetir uma saída comum: a falácia iluminista, reduzida na ideia de que a certeza da punição, por si, previne crimes.

E o tráfico de drogas, diante de lei severa, como anda? Quem são os presos e condenados por tráfico? Porém, voltemos ao problema, agora colocado sob a perspectiva negativa. Quem são esses 97% dos casos de corruptos que não chegam a uma condenação? Que fatos o Estado deixa de investigar ou investiga mal? A não decisão de investigar incumbe a quem?

A seletividade é um tema caro, por se tratar mais de uma opção política e ideológica e menos jurídica, que insere os agentes da burocracia no problema, já que a eficácia do sistema judicial depende deles também. Curiosamente, as propostas que buscam o rigor são desacompanhadas de um valor republicano: a transparência. Demonstrar as causas (falta de estrutura, prescrição etc.) e os fatos que não sofrem o peso da espada do Estado poderia aprimorar a repressão contra corruptos e reduzir a seletividade. Ocorre que, aí, começa-se a entrar na seara de uma “psicologia social”, que transpareceria a real manipulação: “o problema nunca é o que fazemos, está com os outros”.

Rafael Rodrigues Viegas e Silvia A. Mongelós Viegas são mestres em Ciência Política pela UFPR, vinculados ao Nusp-UFPR.
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