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Fantasias pueris, insensatas – guerras são travadas por crianças que se imaginam adultos e invulneráveis. Morrem estupidamente nos campos de batalha ou são afogadas em praias rasas, tépidas e sossegadas, iludidas pelo fim do tiroteio. Quando sobrevivem, esquecem o horror para, de novo, envergar uniformes.

A foto do menininho sírio Aylan Kurdi carregado pelo policial turco no balneário de Bodrum, Mar Egeu, em instantes atravessou o mundo e tocou as almas das crianças encanecidas que brincam de fazer política. Algo pode mudar.

Não muito. Dentro de alguns dias estará nas livrarias a tradução de Hereges, a nova saga do admirável narrador cubano Leonardo Padura, cuja história começa em maio de 1939, quando o transatlântico alemão Saint Louis chegou ao porto de Havana, vindo de Hamburgo, com 937 refugiados, a maioria judeus, com a documentação fornecida pelas autoridades nazistas. Refugiados legais com a entrada assegurada pelas autoridades cubanas. Mesmo assim, o navio foi proibido de encostar porque, no interregno, a ditadura cubana refez a sua política migratória, tornando sem efeito os vistos concedidos.

Guerras são travadas por crianças que se imaginam adultos e invulneráveis

Obrigado a seguir viagem, o corretíssimo comandante Schröder tentou aportar em Santo Domingo, cujo ditador de plantão, Rafael Trujillo, assegurara meses antes a entrada de 100 mil refugiados judeus. Não foi autorizado; tentou Miami, com idêntico resultado, apesar da presença do liberal Franklin Roosevelt na Casa Branca. Depois das negativas da França e Inglaterra, o barco encostou em Antuérpia, na Bélgica, e descarregou sua carga de refugiados. Mais da metade foi recapturada meses depois (quando Bélgica e Holanda foram esmagadas pela blitz nazista) e enviada para os infalíveis campos de extermínio.

Padura não se contenta em descrever o trágico périplo do Saint Louis, inspirador de rica bibliografia e filmografia. Em busca de hereges, refugiados e mártires, retroage à primeira metade do século 17 para desvendar outros fanatismos e barbáries.

A história do Saint Louis começa no balneário de Evian, na França, onde em julho de 1938, a pedido do mesmo Franklin Roosevelt, foi organizada uma conferência internacional para tratar dos 500 mil judeus expulsos da Alemanha e 200 mil apátridas produzidos pela anexação da Áustria. Durante oito dias, delegados de 35 países (Brasil incluído) e 24 organizações filantrópicas internacionais discutiram a sorte do quase milhão de refugiados oriundos do novo império nazista e os milhões de outros que se acotovelavam em países vizinhos e simpáticos ao fascismo. Criou-se uma entidade inútil, o Comitê Intergovernamental para Refugiados, que em matéria de vistos, além do surpreendente oferecimento de Trujillo, pouco alterou o quadro de drásticas restrições à entrada de refugiados.

Às vésperas do início da Segunda Guerra Mundial, os governos de Polônia e Romênia (certamente instigados pela diplomacia nazista) apelaram, através de um memorando, aos países pouco povoados e com grandes extensões de terra (Brasil incluído) visando a criação de santuários para acolhida dos refugiados europeus. Ninguém se mexeu.

Pouco depois, começou a liquidação das comunidades judaicas na Europa do Leste, ainda sem o tag de Solução Final, mas com idêntico objetivo. Quando a Wehrmacht enfiou os judeus poloneses no Gueto de Varsóvia (logo depois arrasado), alguém fez um dramático flagrante fotográfico que entrou para a história universal do horror: um garoto judeu com no máximo 10 anos, a estrela amarela costurada no casaco, marcha com os braços levantados, rendido pelos soldados alemães ao lado.

Ninguém sabe o nome e o destino do pequeno prisioneiro; a foto só começou a circular e tornar-se ícone quando foi possível certificar que o nazi-fascismo fora finalmente vencido. Não foi: ai está a Hungria de Viktor Orban fechando as portas de uma suposta Europa sem fronteiras que, não obstante, deixa Aylan Kurdi morrer na praia.

Alberto Dines é jornalista.
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