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 | Roberto Custódio/Arquivo Jornal de Londrina
| Foto: Roberto Custódio/Arquivo Jornal de Londrina

Por mais racionais que sejamos, quando pensamos de modo descompromissado sobre a situação das crianças no Brasil e no mundo tendemos a sonhar. Desejamos que possam brincar, estudar, se alimentar adequadamente e serem amadas; trabalho é para adultos.

Mas a realidade é complexa e cruel, não é sempre que isto ocorre: a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua) divulgada pelo IBGE neste fim de novembro revela que há quase 2 milhões de crianças e adolescentes de 5(!) a 17 anos no mercado de trabalho brasileiro. Cerca de 30 mil crianças entre 5 e 9 anos de idade estão trabalhando; entre 10 e 13 anos, são aproximadamente 160 mil crianças trabalhadoras. Em nosso país, no século 21.

Crianças sempre trabalharam, a princípio como ajudantes em tarefas simples, na agricultura e na pecuária. Sua participação gerou até inúmeros contos populares, como Pedro e o Lobo, em que um pastor de ovelhas, certamente criança, imagina maneiras de brincar enquanto trabalha, com mau resultado. Da área rural portuguesa nos vem um dito do começo do século 20: “o trabalho do menino é pouco, mas quem não o usa é louco” – é absurdo, mas era a sabedoria vigente.

Cerca de 30 mil crianças entre 5 e 9 anos de idade estão trabalhando

A Revolução Industrial, com o desenvolvimento de máquinas que diminuíam a necessidade de força física para a operação, permitiu o emprego do trabalho de mulheres e crianças que, evidentemente, recebiam menores salários que os demais trabalhadores, ocasionando sua demissão ou redução salarial; como consequência, os pais traziam toda a família para a fábrica, tentando compensar as perdas de receita e conseguir sobreviver. Um censo da Inglaterra dos anos 1860 mostra que mais de 35% dos meninos e 20% das meninas eram trabalhadores, mais de um terço dos trabalhadores na indústria têxtil era menor de 18 anos, e na mineração de carvão, uma das mais insalubres e perigosas atividades profissionais, um quarto dos trabalhadores era menor de idade. E isso não era privilégio inglês: nos Estados Unidos e na França a realidade era parecida, com elevadas taxas de crianças trabalhando.

No Brasil, o trabalho infantil era parte da escravidão: os filhos dos escravos participavam das atividades de seus pais, e foram comuns as constatações de crianças e adolescentes obrigados a realizar tarefas para as quais não tinham capacidade física ou preparo para evitar acidentes. A incipiente industrialização do país, no fim do século 19, reproduziu o modelo de outros países e o utilizou largamente: quase 40% dos trabalhadores em fábricas na cidade de São Paulo eram crianças e adolescentes.

Leia também: É seu, é meu, é nosso – uma teoria sobre o capitalismo infantil (artigo de Daniel Nonohay, publicado em 8 de março de 2017)

Leia também: A realidade do trabalho infantil (artigo de Reginaldo de Souza Silva, publicado em 20 de janeiro de 2012)

Muitos escritores e pensadores do século 19 discutiram o tema, e Charles Dickens escreveu vários romances em que as condições de trabalho e sociais daquela época são bem descritas. Posteriormente, a questão pareceu desinteressar os acadêmicos até os anos 1990, quando passou a ser parte de uma agenda humanista voltada à redução da pobreza e melhoria da qualidade geral de vida. Surgem, então, diversas políticas nacionais e internacionais ligadas à redução do trabalho infantil; as principais delas foram a da ONU para o Direito das Crianças (1989), a da Organização Internacional do Trabalho que visa a eliminação das piores formas de trabalho infantil (1999) e a Declaração do Milênio, que enfatiza a redução da pobreza e a educação universal (2000). No Brasil, a Emenda Constitucional 20, de 1998, estabelece a idade mínima de 16 anos para que um adolescente possa trabalhar em ocupações não insalubres, perigosas ou que lhe tragam riscos morais; entre os 14 e 16 anos, poderá trabalhar no estatuto da Lei de Aprendizagem.

Mesmo considerando que a análise estatística sobre esse assunto deve ser feita com bastante critério para evitar a sub ou sobrestimação de valores, pois o trabalho infantil pode ser intermitente ou sazonal, principalmente em áreas agrícolas; e, ainda, a questão do trabalho domiciliar praticado principalmente por meninas que cuidam da casa enquanto a mãe trabalha fora, os dados são preocupantes. Mesmo com a existência dos casos em que as tarefas da criança não são propriamente trabalho, apenas um auxílio aos pais realizado poucas horas por semana e que não prejudica suas demais atividades de estudo ou brincadeiras, um país sem injustiças e desigualdades extremas precisa inserir suas crianças no sistema educacional, e não precocemente no mundo do trabalho.

Wanda Camargo, educadora, é assessora da presidência do Complexo de Ensino Superior do Brasil (UniBrasil).
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