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Para entender quando o presidente da República pode estar sujeito ao impeachment, é fundamental ter uma noção básica da diferença entre cargo, função e mandato. Cargo é um lugar permanente na estrutura administrativa. Função é o conjunto de tarefas que devem ser executadas por quem ocupa o cargo. Mandato é a titulação jurídica, outorgada pelo voto, para que alguém exerça as funções inerentes ao cargo.

Pela Constituição Imperial, de 1824, o soberano era inviolável e sagrado, não estando sujeito a responsabilidade alguma. Na Constituição republicana, o presidente tem um mandato temporário e está sujeito à responsabilidade por seus atos. O presidente é um cidadão como qualquer outro e que recebeu do povo um mandato, pois “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”.

O presidente reeleito estará no exercício de suas funções por oito anos e pode ser responsabilizado por atos e omissões ocorridos durante todo esse período

No sistema do Estado Democrático de Direito, no Brasil, o poder de outorgar um mandato é exercido diretamente pelo povo, mas o poder de retirar o mandato é exercido pelo povo por intermédio de seus representantes. Seria absurda a impossibilidade de retirada do mandato quando o outorgado se comportar como um mandatário infiel. Portanto, não há qualquer ofensa ao princípio democrático republicano da soberania popular (ou seja, não há “golpe”) quando representantes do povo cassam o mandato do presidente pela prática de atos que a Constituição designa como crimes de responsabilidade.

No artigo 85 está afirmada a regra geral de que “são crimes de responsabilidade os atos do presidente da República que atentem contra a Constituição Federal”. Ou seja: a regra geral é a da possibilidade de cassação do mandato, em perfeita consonância com o sistema republicano democrático. Porém, há uma limitação, no § 4.º deste mesmo artigo: “O presidente da República, na vigência de seu mandato, não pode ser responsabilizado por atos estranhos ao exercício de suas funções”.

É óbvio que o presidente não pode perder o mandato se não estiver no exercício dele. Também não pode responder por crime de responsabilidade por atos praticados na vida privada, na vida social, que nada tenham a ver com o exercício das funções inerentes ao cargo. A exigência constitucional é de que o ato sancionável tenha sido praticado (por ação ou omissão culposa) no exercício das funções de presidente.

Atualmente, nos termos do § 5.º do artigo 14, o mandato é de quatro anos, mas o presidente pode ser reeleito por mais um período subsequente. Em decorrência dessa alteração constitucional, o presidente da República estará no exercício de suas funções por oito anos, se for reeleito. Portanto, no caso de reeleição, o presidente pode ser responsabilizado por atos e omissões que configurem crime de responsabilidade ocorridos durante todo esse período.

Toda norma jurídica comporta uma pluralidade de interpretações. Portanto, cabe ao jurista buscar a melhor interpretação possível, ou seja, aquela mais condizente com a realidade social e com os valores fundamentais do sistema jurídico. No caso, a norma constitucional superveniente, possibilitando o alargamento do período de exercício das funções inerentes ao cargo, determina o correspondente aumento do período de responsabilização, pois a interpretação de normas anteriormente existentes deve ser feita de maneira evolutiva, em conformidade com os princípios fundamentais da Constituição Federal.

Adilson Abreu Dallari, especialista em Direito Político pela Faculdade de Direito da USP, é professor titular de Direito Administrativo da Faculdade de Direito da PUC-SP.
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