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Dentre as inumeráveis questões jurídicas em torno do impeachment de Dilma Rousseff, a possibilidade da realização da sua defesa técnica pela Advocacia Geral da União (AGU ) no processo de afastamento surgiu, nos últimos dias, como tema bastante polêmico.

A AGU argumenta que, no caso, promove a defesa de atos administrativos tomados como ilícitos praticados pela Presidência no exercício de atribuições constitucionais e que a sua defesa teria por objetivo principal resguardar tanto a presunção de legalidade destes atos quanto a manutenção de seus efeitos, como o faz nas mais de 200 (duzentas ações) nas quais até hoje atua na defesa dos ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva por atos realizados enquanto eles ocupavam o cargo.

Esse exercício exige independência e parcialidade, que não existe quando seu advogado atua tanto em sua defesa subjetiva, quanto em favor da União

Defender a presidente é defender a vontade do povo que a escolheu

O impeachment de Collor não nos dá a resposta por que, ainda que o ex-presidente tenha sido defendido por advogados particulares, a AGU, prevista na Constituição em 1988, só veio a ser criada em 1993, já no governo Itamar Franco

Leia artigo de Lincoln Schroeder Sobrinho, procurador federal e professor de Direito na FAE

A questão, porém, não é tão simples. Até mesmo juristas contrários ao impeachment, como o professor Pedro Estevam Serrano, da PUC-SP, manifestaram-se contrariamente à possibilidade de defesa da presidente pela AGU.

Sob uma perspectiva normativa, antes de tudo, o artigo 22 da Lei nº 9.028/95, que estabelece a possibilidade de representação de pessoas físicas pela advocacia pública da União, teve a sua redação atribuída pela Medida Provisória (MP) nº 2216/01, que é inequivocamente inconstitucional, uma vez que: a) inexiste relevância ou urgência para a alteração legislativa promovida pela MP; b) é vedada a edição de MP sobre direito processual civil; c) os limites e as possibilidades da representação da União pela AGU são estabelecidos pela Lei Complementar nº 73/93, norma de âmbito distinto de disciplina jurídica; e d) é vedada a edição de medida provisória sobre matéria reservada a lei complementar. Em síntese, não há autorização normativa para que a AGU promova a representação de pessoas físicas.

Mesmo se a Constituição autorizasse, o que não é o caso, a AGU somente poderia atuar na defesa individual do agente público nas hipóteses em que não fosse possível a dissociação da defesa subjetiva dos atos do agente com a defesa dos atos da União. Tal ocorreria, por exemplo, em ações populares, civis públicas e representações em geral, nas quais a eventual condenação dos agentes públicos repercutiria diretamente na esfera de interesses jurídicos do ente público.

No processo de Impeachment, contudo, pretende-se a responsabilização da pessoa da presidente da República, dissociada de qualquer imputação de responsabilidade à pessoa jurídica da União Federal.

Inexiste, neste processo, portanto, a possibilidade da defesa subjetiva da pessoa física pela AGU seja porque não se imputa, ao lado da presidente da República, responsabilidade à União, seja porque eventualmente pode existir conflito de interesses entre a defesa do agente político com a defesa da própria União. Nessa hipótese, se a AGU promove a defesa do agente político, quem exerceria a defesa institucional da União?

Ademais, conforme a Constituição, as sanções decorrentes do impeachment aplicam-se exclusivamente ao agente político: perda do cargo e inabilitação para o exercício de função pública por 8 anos. Teoricamente, tais penalidades não afetam os interesses jurídicos da União: o vice-presidente, eleito na mesma chapa e sob a mesma plataforma de campanha e programa de governo – ao qual, em tese, está vinculado – assume e conclui o mandato para o qual também foi eleito.

Sob um ângulo deontológico, a plenitude de defesa, inerente ao devido processo assegurado à Presidente no Impeachment, exige o livre e desimpedido exercício da atuação de seu advogado.

Esse livre exercício exige independência e parcialidade, que não existe quando seu advogado atua tanto em sua defesa subjetiva, quanto em favor dos interesses da União.

Como há a vedação para que a AGU advogue contra a União, em caso de conflito de interesses entre a pessoa física e a pessoa jurídica, poderão ocorrer duas situações: ou haverá a prática de improbidade pela AGU ou sobrevirá deficiência na defesa da pessoa física, em seu irreparável prejuízo.

Além de não permitida pelo ordenamento jurídico, portanto, a representação da presidente da República pela AGU no processo de impeachment pode ensejar limitação à sua própria plenitude de defesa. Para garantia não apenas dos interesses da União, mas também dos direitos dos próprios agentes políticos, a AGU precisa compreender-se como advocacia de Estado, não de Governo.

Thiago Lima Breus, advogado, doutor em Direito do Estado, é professor da Faculdade de Direito da UFPR.
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