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Um homem que se sinta quente não pode compreender outro que sente frio, sentenciou o autor e antigo prisioneiro Aleksandr Solzhenitsyn, por intermédio de um de seus personagens, ao se recordar dos opressivos dias vividos nos invernos dos gulags soviéticos. Trata-se de uma sentença simples, sem rodeios e, talvez por isso mesmo, pungente. Treze palavras, retiradas da experiência sofrida, que fazem pulular uma verdade filosófica e epistemologicamente tão evidente quanto paradoxalmente ignorada.

Um homem que se sinta quente não pode compreender outro que sinta frio. Ou, analogamente: os providos de bens básicos não podem compreender aqueles que não os possuem. Uma segunda hipótese: os detentores de privilégios, quaisquer que sejam, não podem compreender aqueles a quem resta ficar às suas margens. Opressores tampouco podem compreender seus oprimidos. Ao menos não unilateralmente e tampouco integralmente.

Naturalmente, todas essas breves reflexões teriam pouca serventia se viessem desacompanhadas de maiores esclarecimentos a respeito do significado mesmo de “privilégios” e, especialmente, de “opressão”. Afinal, é preciso identificar a opressão para identificar opressores e oprimidos – e, então, pensar as relações entre estes.

Não é, contudo, o objetivo deste texto delinear as várias formas de opressão e exclusão existentes na sociedade brasileira. Preocupo-me, aqui, precisamente com o passo seguinte: como pensar e lidar com as relações entre opressores e oprimidos que, criados e habituados a contextos diversos, ocupam, ao menos formalmente, um mesmo espaço a que chamamos “sociedade”? Em outras palavras, é possível manter, de maneira saudável e não opressora, comunicação e diálogo entre opressores e oprimidos que compartilham uma mesma ordem jurídica e social, naturalmente que com a finalidade de que este estado de coisas injusto cesse, ou ao menos diminua?

É preciso que os oprimidos manifestem suas próprias preocupações, carências e vivências

Uma primeira impressão poderia sugerir que, porquanto cada ser humano apreende sentidos exclusivamente a partir do contexto linguístico e socioeconômico em que fora inserido, havendo contextos diversos – por exemplo, o contexto do incluído e o contexto do excluído –, seria impossível qualquer comunicação minimamente frutífera entre estes. A cada grupo ou classe somente competiria agir conforme o seu próprio interesse: o opressor, segundo esta perspectiva, jamais conseguiria pensar a não ser a partir da lógica opressora que o constitui, de modo que qualquer diálogo com ele estaria fadado ao fracasso. Ao opressor, pouco importando as suas boas intenções e, em especial, a sua consciência a respeito deste estado de coisas injusto, restaria tão somente o silêncio passivo quando o tema do debate fosse a opressão que ele mesmo perpetua. Antes de ser um ser humano a quem seria possível pensar de maneira minimamente racional e autônoma, ele seria um mero espelho das opressões que inevitavelmente perpetua.

Seguindo essa lógica, por exemplo, o feminismo deveria ser tema de debate somente entre as mulheres; o racismo, entre os negros, índios e pardos; e a homofobia, entre os homossexuais. Afinal, tudo o que saísse da boca de um homem, branco e heterossexual não poderia ser nada mais que a reprodução de um discurso machista, racista e homofóbico.

Essa problemática tem sido objeto de debates intensos, na academia e nas ruas. Não raro, posições baseadas nas premissas do parágrafo anterior se valem do que se convencionou chamar de “local de fala” ou “lugar de fala”: cada ser humano interpretaria o mundo e apresentaria argumentos em diálogos a partir de um local próprio de fala, resultado de suas próprias experiências sociais.

Embora o conceito seja relativamente recente, sua ideia central não é inédita, bastando a leitura de estudiosos da epistemologia e da filosofia da linguagem que remontam à primeira metade do século 20 para constatá-lo. Mas essas premissas epistemológicas e linguísticas efetivamente nos remetem às conclusões acima mencionadas?

Demétrio Magnoli: A mulher que chora (1.º de janeiro de 2018)

Gustavo Nogy: Qualquer lugar é lugar de fala (28 de novembro de 2017)

Parece-me relevante, sobretudo em um ano eleitoral, quando debates sobre tais temas costumam se acirrar, tecer alguns breves comentários a essas conclusões apressadas. Vamos a elas.

Todo pensamento constitui-se por meio da linguagem. A linguagem, por sua vez, tem uma carga eminentemente contingencial e contextual, embora ela não possa prescindir de certa sistematização e, portanto, da lógica. Ou seja, de um modo ou de outro, nós pensamos a partir da linguagem que aprendemos e, em última análise, do contexto social em que nos inserimos. Esse contexto social, naturalmente, está imbuído de suas próprias tradições e preconceitos. Não há como pensar abstratamente, isto é, despindo-se totalmente de toda tradição e convenções anteriores a qualquer reflexão mais acurada (preconceitos).

Portanto, se o contexto social no qual fomos criados reproduz opressões e preconceitos, por exemplo, de caráter machista, certamente estes serão reproduzidos em futuros discursos e ações, ainda que tentemos evitá-lo ao máximo. Aliás, não é raro que tais preconceitos estejam obscurecidos por discursos aparentemente singelos e bem-intencionados, o que torna ainda mais árdua a tarefa de desvelá-los.

Em síntese, todos reproduzimos preconceitos em nossos discursos: isso é epistemologicamente inevitável. Mas todos esses preconceitos podem ser desnudados por meio da razão, do pensamento e da argumentação, e isso a despeito de suas notórias limitações, como tem provado a história da humanidade. Cabe-nos, portanto, um exercício de reflexão sobre todo ato de poder praticado em sociedade e, em seguida, a busca por razões que os justifiquem.

A participação no debate não pode ser vetada a quem quer que seja

É possível, nesse exercício, que o privilegiado ou opressor perceba o seu próprio preconceito e a opressão dele oriunda, embora, evidentemente, seja-lhe impossível ter a mesma compreensão que fatalmente marca o oprimido. Um homem que se sinta quente não pode compreender outro que sinta frio, afinal.

De todo modo, a alteridade e qualquer conceito de justiça que pretenda ser levado a sério reside precisamente nessa tentativa sincera de compreender a dor do outro, do diferente. Reside na busca por um pensamento que vá além do indivíduo narcísico ou do grupo a que ele pertence ou com o qual se identifica, mesmo porque não se pode vincular cada pessoa a um único grupo identitário. E é no diálogo autêntico, não no embate e na imposição, que ela, a alteridade, se faz possível.

A vida em sociedade pressupõe o convívio entre diferentes que pensem diferente – e, idealmente, um convívio não opressivo e injusto. Sem desacordos, não há democracia possível.

Ao procurarem vetar qualquer possibilidade de diálogo entre opressores e oprimidos, muitos estudiosos e ativistas não raro defendem um sectarismo que é prejudicial à democracia e que, na prática, inviabiliza a própria compreensão generalizada de preconceitos e opressões, ao mesmo tempo em que reduzem pessoas de ambos os grupos a conceitos teóricos, como se elas fossem absolutamente desprovidas de qualquer autonomia de pensamento. Para os mais dogmáticos, aliás, haveria uma cartilha de pensamentos para o oprimido e outra para o opressor, e nada mais, cabendo a cada lado seguir a sua e impô-la ao outro.

Nossas convicções: O poder da razão e do diálogo

Francisco Razzo: A civilização das mulheres (28 de fevereiro de 2018)

Opta-se, com isso, pelo jogo de forças, em detrimento do jogo de argumentos. A própria argumentação é vista como inócua e não raro como instrumento latente e eficaz de opressão, ainda que, mesmo quando se faz tal afirmação, já se esteja a argumentar e a procurar fazer uso da razão.

Como falei, não me parece ser este o melhor caminho, tanto em termos intelectuais, como em termos pragmáticos. O caminho deve ser um diálogo aberto a todos, com todas as ressalvas já mencionadas.

De qualquer forma, não se pode desconsiderar que uma importante conclusão a ser retirada de todas essas premissas epistemológicas é que se constata uma proibição moral ao silenciamento das vozes dos que “têm frio”, isto é, dos oprimidos. Um exemplo corriqueiro: os que vivem vidas materialmente confortáveis não pode(ria)m ditar as políticas públicas destinadas àqueles que vivem em comunidades carentes de bens básicos. É preciso que estes manifestem suas próprias preocupações, carências e vivências, sob pena de se perpetuar uma situação injusta e medidas pragmaticamente inócuas, embora não raro dotadas de uma forte carga simbólica – é o caso das tão paradoxalmente aclamadas propostas para abolir o tráfico e a violência das favelas apostando em uma polícia cada vez mais violenta. Outro exemplo sensível: normas que se destinem a regular condutas praticadas por mulheres, como é o caso do aborto, não pode(ria)m ser criadas unilateralmente, sem a participação direta destas, as suas maiores afetadas. Com um Congresso e um governo dominados por homens, muitos deles moralistas de carteirinha, contudo, esse ideal parece atualmente intransponível.

Daí a importância de se reconhecer um direito universal a ser ouvido, cada um em sua própria voz, essência da própria ideia de democracia. A perspectiva do oprimido, nestes casos, é efetivamente a mais relevante. E isso é, sem dúvida, um aspecto em que acerta boa parte dos defensores do chamado “lugar de fala”. Por outro lado, a participação no debate, cuja consequência tende a envolver o desvelamento e a compreensão mesma de preconceitos, não pode ser vetada a quem quer que seja.

André Felipe Portugal, advogado, é mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Coimbra (Portugal).
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