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 | Elza Fiuza/Agência Brasil
| Foto: Elza Fiuza/Agência Brasil

Há muitas questões em torno da democracia para as quais os filósofos, sociólogos e cientistas políticos ainda estão delineando uma resposta mais ou menos coerente com as realidades políticas historicamente vividas — ou as que supostamente ainda virão. Algumas questões ainda se mantêm intactas: a democracia, enquanto essência, é realmente possível, ou é possível apenas a parte já experimentada da democracia? O que de fato é a democracia no terreno real da sociedade moderna? A democracia é para todos? E, se é para todos, também é para aqueles que não seguem seus princípios?

A verdade é que o conceito de “democracia” — assim como o de “substância”, “essência”, “transcendência” e “ser” — se torna quase que amorfo na realidade materialista e científica em que a nossa sociedade hoje está submersa. De suas práxis, resta-nos apenas rasos princípios peneirados pelas metodologias científico-materialistas. Esse problema, aliás, que perpassa o campo epistêmico e alcança o prático, talvez seja o desafio da filosofia no século atual, isto é: descobrir o limite do conceito puro frente a um mundo limitado, finito e falho; e que, justamente por ser balizado, resiste às definições puras e idealísticas.

Espero mesmo que a esquerda nunca mais governe meu país, mas na mesma proporção eu espero que ela seja sempre uma possibilidade para que meus concidadãos

É possível observar essa aporia no Brasil. A democracia à brasileira tornou-se basicamente três coisas: I) adorno para discursos políticos; II) justificação ideológica; III) adjetivo pessoal e afagador de egos.

I) A tal da democracia no campo estatal, como bem sabemos, é — ou deveria ser — a fundamentação basilar de todo o aparato federativo. É através dela que — míopes e claudicantes — nos guiamos numa sombra embaçada de liberdades e garantias. Entretanto, além dessa característica fundamental no aparato federal, também é muito belo acrescentar “democracia” a quaisquer discursos sobre a reforma agrária ou sobre a identidade de gênero, por exemplo. Evoca-se a democracia para falar de Dalai Lama e suas pregações de igualdade, assim como para falar Che Guevara e seus gostos condenáveis de treinar tiro-ao-alvo com os inimigos da sua militância; fala-se da democracia para inflar a verdade última que do povo tudo emana, e também para dizer que na democracia o povo deverá colaborar com o Estado doando cinco meses de trabalho para pagar impostos, sendo que parvamente esse mesmo povo receberá de volta um mês desse investimento obrigatório. A democracia passou a ser vírgulas, acentos e chavões para tentar enobrecer discursos corriqueiros. Entretanto, não está aí o problema: a grande piada disso tudo é que, se pedirmos para os deputados, senadores e presidentes definirem ou explicitarem o que é a tal “democracia” que eles tanto pavoneiam — e veja, nem precisa ser algo muito profundo, não precisam voltar à Péricles, Platão, Aristóteles, Políbio, Cícero, Montesquieu e Rousseau, apenas explicar os pilares básicos, o senso comum —, perceberemos então que a democracia para eles é o mesmo que papel higiênico, um utensílio de uso corriqueiro e necessário, porém banal. Depois de usado, sem demora vai para o lixo.

II) A democracia passa a ser uma justificativa elegante para ideologias e partidos, tudo passa a ser supostamente feito “na” democracia e “para” ela — mas repare: supostamente. Nesse espírito, direita e esquerda passam a batalhar num cabo de força eterno para saber quem possui o monopólio da sacra democracia. Obviamente, é uma luta tola e sem sentido, como se a criatura tentasse criar ou dominar o criador. Assim como o Estado não pode definir o que é “família”, “liberdade” e “vida”, pois tais conceitos são histórica e essencialmente anteriores aos Estado, tendo ele vindo deles e não o contrário; assim as ideologias tentam balizar a democracia dentro de suas gavetas doutrinais, sendo que são elas que dependem da democracia para existir e não o oposto. Dessa maneira, muitas ditaduras foram e são justificadas em nome da democracia. Por exemplo, o comunismo soviético, seguindo os dogmas de Marx, definiu que, para chegar à sociedade perfeita, igual, livre e sem apegos privados, deveria antes acontecer a ditadura do proletariado. A conquista da democracia passava antes pela ditadura, afirmavam os marxista-soviéticos. Simone Goyard-Fabre afirma, em seu livro “O que é Democracia”, que a democracia passa ser uma justificativa para as tiranias, justamente por ela criar uma miragem de perfeição social para a qual, a todo custo, as sociedades devem ascender sem demora. Na visão das ideologias, isso deve acontecer nem que seja a custo de sangue e destruição.

III) Por fim, a democracia se torna um adjetivo pessoal. Dizer “ser democrático” nos leva às alturas, nos torna descolados, inteligentes, defensores das minorias e garantidores da abertura ao novo. Se possuirmos a medalha da democracia cravada em nossos peitos, poucas coisas nos serão proibidas. A democracia passa a ser, então, uma espécie de charme dos egos, um massageador de consciências que permite às nossas ideias — por mais estapafúrdias que sejam na realidade — o direito de ser elevadas ao posto de dogmas irrefutáveis. Ou seja, nossas ideias nos autorizam a gritar: “morte aos comunistas”, “volta à ditadura militar”, “1, 2, 3, 4, 5, mil, lugar de fascista é na ponta do fuzil”, “Stálin matou pouco” e, após isso, justificar tais gritos com apenas uma frase: “É pela democracia”. Afinal, “não se fazem revoluções sem se quebrar alguns ovos”, diriam os Black Blocs. Por sermos, a priori, “democráticos”, e por portarmos esse adjetivo arraigado em nossas essências, não importa muito que, por vezes, atos ditatoriais venham aflorar. Pois, por essência, somos democráticos e se somos democráticos, tudo nos é permitido e nos convém. Em nome da democracia vale até mesmo não ser democrático.

Democracia é apresentada, então, como uma realidade Gourmet, uma coisa mais requintada que é dada a poucos, apesar de dizerem que é para todos. Por exemplo, no Brasil democrático defendido pela esquerda, Jair Bolsonaro (PSC-RJ) sequer deveria ser político, sequer deveria falar, muito menos se candidatar à presidência da república; ao mesmo tempo que, no Brasil democrático do conservadorismo de bar, Judith Butler sequer deveria ser recebida no Brasil. Tudo isso porque “meu” grupelho — ou o “seu” — não concorda com certas opiniões desta ou daquela pessoa. Nessa mesma esteira de “liberdades”, alunos que estudam à custa dos impostos de todos, em uma universidade pública (e por ser pública espera-se ser democrática), impediram que o documentário sobre filósofo conservador Olavo de carvalho fosse exibido. Ou, quando permitiram a exibição, como foi o caso na UFPE, após o término do documentário agrediram aqueles que lá foram para assistir. Por que fizeram isso? Porque são “democráticos”.

Confesso que muitas das ideias — e principalmente a falta de conhecimento em muitas matérias essenciais — de Jair Bolsonaro não só me incomodam, como me repelem. Entretanto, ainda sim, ele não só tem o direito de expressá-las como também tem o direito de atrair seguidores que concordam com ele. Numa sociedade realmente democrática, o trato jornalístico dado a Bolsonaro não deveria ser diferente do trato jornalístico dado a qualquer outro pré-candidato. A democracia não acontece a partir de nossos egos e preferências.

Se a democracia é um artigo para poucos, então a democracia não é democrática. É verdade que, na Grécia clássica, a cidadania da Polis era dada a poucos, mas já evoluímos dessa definição, passemos adiante. A democracia, tal como a entendemos no século XXI, não pode ser um objeto de elites intelectuais, povos escolhidos e diretórios acadêmicos; ela deve pulsar arejada num campo de ideias abertas que garantam aos cidadãos a multiplicidade de princípios e possibilidades de escolhas, sem excluir de antemão uma vertente. Para lembrar Rousseau, é a efetividade da democracia na sociedade que garante que a vontade geral aconteça, tornando assim a própria realidade comunal uma verdade experimentada. Sem isso, tudo é hipocrisia e teatro; mero fetiche de idealizadores. Se a democracia é sectária frente a certas preferências políticas, se ela é exclusivista ante uma ideologia determinada, então não passamos de arautos de uma ideia essencialmente pífia.

Do mesmo autor: A revolução que não acabou: os ecos do comunismo na atualidade

Movimentos que buscam emudecer expressões políticas diferentes com violências, tachações e simplificações abobalhadas como “fascistas”, “estupradores”, “esquerdopatas”, etc., só mostram como somos uma nação que não aprendeu nada com as tiranias dos pensamentos únicos do século passado; como ainda somos, por vezes, um povo politicamente pouco evoluído e despreparado para o trato político.

Como liberal-conservador que sou, espero mesmo que a esquerda nunca mais governe meu país, mas na mesma proporção eu espero que ela seja sempre uma possibilidade para que meus concidadãos que não pensam como eu tenham garantido a possibilidade de votar e defender as ideias de outros expoentes políticos.

Todas as vezes que a democracia significou o monopólio ideológico, muitas pessoas padeceram em seu nome. Ela é essencial, não há como conviver numa sociedade livre sem que ela seja a protagonista. Daí vem a urgência de defender a verdadeira democracia, aquela que nos garante, antes das preferências dos grupos, a liberdade para uma real escolha individual. Todavia, hoje, quando uma pessoa começa a falar muito sobre a famigerada “democracia” a fim de justificar suas ideias, já me posto na defensiva e verifico se a democracia dele não é uma desculpa para tirania.

Pedro Henrique Alves é filósofo, colunista do Instituto Liberal, criador e escritor do Blog do Contra.
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