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Como resistir à dominação que a mulher desejada exerce sobre o homem que a deseja?

A peça “Depois do Ensaio”, de Ingmar Bergman (1918-2007), em cartaz em São Paulo até dia 27 deste mês, é um presente para quem aprecia a obra do cineasta e dramaturgo sueco.

Apreciar a obra de Bergman exige um certo repertório, não só do universo de sua vida e suas preocupações, mas também da filosofia e da psicanálise, entre outras coisas.

Ele é conhecido como o cineasta filósofo justamente porque nunca escondeu a dimensão reflexiva de sua obra. Entre os anos 1970 e 1980, aqui no Brasil, “gostar” de Bergman era essencial para pegar gostosinhas inteligentes.

A peça está em cartaz no teatro Eva Hertz da Livraria Cultura do Conjunto Nacional. A montagem tem direção de Mônica Guimarães, com assistência de direção e produção de Pitxo Falconi.

O elenco é enxuto e competente. Leopoldo Pacheco no papel do diretor de teatro (com tons autobiográfico evidentes) Henrik Vogler, e duas mulheres lindas (bem ao gosto de Bergman): Ana, a jovem atriz representada pela jovem atriz Sophia Reis, personagem e intérprete enfrentando as inseguranças das jovens atrizes (era bem característico de Bergman colocar camadas “metanarrativas” em suas obras e, por isso mesmo, a direção acerta ao colocar Sophia no papel) e Raquel, mãe de Ana, atriz alcoólatra e deprimida, representada por Malu Bierrenbach, que desfila um corpo de dar inveja a menininhas.

Sophia e Malu encantam pelo que a mulher tem de mais essencial ao olhar masculino: sua beleza.

Vogler (personagem) e Bergman (autor) representam bem a condição masculina de desejar ter essa beleza nas mãos.

Como todo obra de Bergman, a peça é rica em temas que se superpõem. As referências ao teatro são comuns no texto. Mas que ninguém veja nisso uma masturbação estética (coisa comum em artista), porque, quando Vogler se refere, por exemplo, à “miséria do teatro”, é claro que está falando da miséria da vida. Como dizia Nelson Rodrigues, o teatro é mais real do que a vida real.

Entre esses temas, um me parece saltar ao olhos na peça, inclusive porque vai ao coração da vida do próprio Bergman: o tormento que é se envolver com mulheres atraentes.

A peça narra exatamente a luta que todo homem que está em sua condição tem (quando cercado por mulheres bonitas, interessantes e vaidosas): como resistir à dominação que a mulher desejada exerce sobre o homem que a deseja?

Hoje em dia, com muitas mulheres e homens “educados” na ignorância desse poder feminino, essa forma sutil de poder se torna, a cada dia, mais invisível e irrelevante. Talvez, no futuro, nasçam homens imunes às mulheres.

Vogler tenta resistir ao desejo pela mãe e pela filha. Ambas jogam um enorme charme sobre ele, fazem todo tipo de chantagem emocional, bancam as dependentes, pedem para ele pegar em seus seios. Ele vai à beira do abismo. Mas não vou contar o final.

A trama fina das relações entre um homem e uma mulher passa por esse labirinto no qual, muitas vezes, o “gosto” dela, o modo de andar e de cruzar as pernas, o jeito de mexer com o cabelo, vêm acompanhado da queixa de que ele nunca está à altura das demandas de uma deusa como ela. O desejo feminino é infinito, pelo menos aos olhos daquele que deseja o corpo da fêmea.

Bergman teve várias mulheres e muitos filhos. Reconhecia que fora um péssimo marido e um péssimo pai. A “psicologia masculina” é, para muitos, inexistente. Os próprios homens gostam de brincar com a ideia de que as mulheres são complicadas e os homens simples.

Muitos deixam para os gays a imagem de homens complicados e pensam que manter a imagem de homens simples é bom para sua “condição hétero”. Mas, numa época de saturação narcisista como é a nossa, em tempos em que quem não confessa dramas psicológicos parece raso, a imagem do hétero simples parece perder força.

Mas a genialidade de Bergman, mais uma vez, aparece: a mulher que deseja o homem, no fundo, pouco quer saber de suas complicações: quer mesmo é a mão dele em seus seios, quando ela assim o deseja. E quer vê-lo ereto, pronto para penetrá-la.

Luiz Felipe Pondé, escritor, filósofo e ensaísta, é doutor em Filosofia pela USP e professor do Departamento de Teologia da PUC-SP e da Faculdade de Comunicação da Faap.
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