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 | Felipe Lima
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A rapidez com que a confusão de gênero virou de pernas para o ar o entendimento do amor humano construído ao longo de milênios pelas mais importantes obras da poesia, filosofia, teologia e arte ocidentais surpreende. Trinta anos atrás, seria difícil prever que, no século 21, tribunais e parlamentos do Ocidente fossem discutir se casamento é entre um homem e uma mulher. Que decidissem pela negativa era, até outro dia, inimaginável. Demolições são, mesmo, mais rápidas e fáceis do que construções. E, a exemplo do que houve com a ideia de casamento, uma outra demolição, evidenciada pelo estridente sucesso político da teoria de gênero, não é tão recente quanto possa parecer.

O primeiro passo foi um sutil, mas devastador, acréscimo ao vocabulário. Em seu livro Psychopathia Sexualis, publicado em 1892, o psiquiatra forense alemão Richard von Krafft-Ebing cunhou as palavras “heterossexual”, “homossexual” e “bissexual”. Ao usar o termo “sexual” como sufixo, Krafft-Ebing reduziu seu significado à pulsão experimentada pelo indivíduo quanto ao prazer ligado a seus órgãos genitais. O termo perdia, aí, a ligação com o resto do seu campo semântico, especialmente com a procriação. Krafft-Ebing, interessado em criminosos, confinou, assim, a sexualidade ao campo da psiquiatria. Freud, depois dele, estudava histéricas, sádicos e masoquistas.

Para a visão triunfante desde o século 19, o ser humano é apenas um objeto de ciência. Assim, a ação humana deixou de ser parte da moral – o campo que pensa sobre os desejos que devem guiar a partir de si mesmos os seres humanos – para se tornar campo de todo tipo de terapia e engenharia comportamental.

Assim como a frenologia e o racismo, a teoria de gênero, nascida nas clínicas, museus e academias, ganhou as ruas como ideologia

O passo seguinte foi dado pela antropologia. O contato com os mais variados tipos de povos, que teve início com a formação dos grandes impérios do século 19, multiplicou a lista de humanos catalogáveis. Em livros influentes, Margaret Mead, curadora de etnologia no Museu Americano de História Natural, estabeleceu as bases para uma nova dissociação. Assim como a psiquiatria enxergara uma sexualidade não ligada ao corpo, Mead entreviu os papeis de gênero como determinação social arbitrária e não ligados nem ao corpo nem à sexualidade. Quando começou a estudar seu problema, Mead “era inocente de qualquer suspeita de que os temperamentos que nós vemos como nativos de um sexo eram, em vez disso, meras variações de temperamento humano para as quais os membros de qualquer sexo ou dos dois poderia ser treinado”, diz ela própria em Sex and Temperament in Three Primitive Societies.

Estava armada uma concepção em que as esferas da sexualidade procriativa natural, do desejo e do amor, e da significação comunitária, social e espiritual da vida dos casais e da família não mais se integram, como na concepção cristã que fundou o Ocidente. Faltava só transformar a teoria científica em ideologia, isto é, um conjunto de ideias a serviço da tomada ou exercício de poder. Teoria científica não significa, é bom lembrar, teoria verdadeira. O flogisto, o éter como meio de propagação da luz, a frenologia e a teoria das raças não são menos científicas hoje, quando estão devidamente descartadas, quanto eram quando foram propostas seguindo a metodologia requerida. Assim como a frenologia e o racismo, a teoria de gênero, nascida nas clínicas, museus e academias, ganhou as ruas como ideologia. A proposição feminista de Simone de Beauvoir “não se nasce mulher, torna-se mulher” seria abraçada pela segunda onda do feminismo nos anos 1960 e 1970. As mulheres militantes recusavam reconhecer qualquer traço como intrinsicamente feminino. A terceira onda feminista criticou a segunda por se limitar a mulheres heterossexuais brancas de classe média. Era preciso dar voz a todo tipo subgrupo na nascente política de identidade. “A existência e facticidade das dimensões materiais ou naturais do corpo não são negadas”, escreve Judith Butler, a mais vendida autora de livros sobre gênero e professora de Filosofia na Universidade da Califórnia, “mas reconcebidas como distintas do processo pelo qual o corpo vem a portar significado cultural”.

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Butler se alinha a uma série histórica de críticos do realismo, que se estende de Nietzsche e Marx aos estruturalistas franceses e Michel Foucault, que não acredita na possibilidade de atingir a verdade. Tudo o que se possa dizer sobre o mundo vale apenas pelo uso político que se possa fazer dos conceitos. Assim, Butler vê as identidades de gênero construídas como num teatro em que todos são ao mesmo tempo atores e plateia. As múltiplas identidades de gênero não são, portanto, nenhum tipo de verdade essencial. Não existe a versão folhetinesca das telenovelas de “um homem aprisionado num corpo de mulher”, ou qualquer vice-versa que se consiga imaginar. Essas identidades, porém, podem ser úteis no embate político.

Ora, a ciência tem seus próprios métodos para descartar hipóteses. Já o uso político de teses, numa sociedade democrática, depende exclusivamente do desejo e da concordância da maioria. Desse ponto de vista, a ideologia de gênero está derrotada no Brasil. A mais nova frente de batalha da ideologia de gênero é a educação básica. A ideia é inculcar nas crianças, adolescentes e jovens comportamentos compatíveis com a teoria de gênero. Ora, pesquisa feita em outubro em 188 municípios em 26 estados do país, por encomenda da Gazeta do Povo, mostra que 87% dos brasileiros ouvidos acham que “a teoria de que uma pessoa pode escolher o próprio gênero não deve fazer parte do currículo escolar”. Para 78,5%, “escolas e universidades não devem oferecer banheiros unissex para se adequar a alunos transexuais”.

Se o argumento de Butler é o de que a construção do gênero se dá como num teatro, é preciso levar em conta a opinião da plateia. No momento não se ouvem muitos aplausos.

Marcelo Musa Cavallari é escritor, tradutor e jornalista.
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