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Nos primórdios, as necessidades dos bandos de caçadores-coletores e das primeiras civilizações conduziram os seres humanos à apropriação dos animais, principalmente para alimentação. A necessidade se transformou em cultura, e a cultura encontrou na ignorância científica e em postulados religiosos contraditórios fundamentos para a instrumentalização de animais, sem restrições. Se Aristóteles construiu um muro conceitual para separar humanos e animais, outorgando ao ser humano a condição de epicentro de toda ordem universal, Darwin vergou a linha evolutiva para incluir o ser humano como mais um das centenas de elos da cadeia da vida, devolvendo-o ao reino animal. Watson e Crick, desvendando o segredo do DNA em 1953, abriram as portas para que a ciência mapeasse o genoma de centenas de seres vivos, denunciando enfaticamente a animalidade comum e a proximidade chocante dos humanos com demais seres – humanos e chimpanzés compartilham mais de 98% do mesmo DNA.

Em julho de 2012, contrariando Tomás de Aquino, René Descartes e tantos outros, foi publicada a Declaração de Cambridge, em que um grupo internacional de neurocientistas categoricamente reconheceu que os animais, assim como os humanos, experimentam estados afetivos e possuem os substratos neuroanatômicos, neuroquímicos e neurofisiológicos de estados de consciência e capacidade de exibir comportamentos intencionais. Sendo humanos e animais partes do todo, compartilhando estruturas genéticas, constituição física e química, sentidos e capacidades neuronais, estando irremediavelmente unidos pelo medo da morte e da dor, não exige a racionalidade um tratamento jurídico que garanta minimamente direitos fundamentais a algumas espécies de animais? A não ser por uma esquizofrenia antropocêntrica, parece não fazer muito sentido acreditar ou defender que um punhado de células embrionárias tenha mais proteção jurídica que centenas de outras formas de vida abandonadas ao jugo humano em laboratórios ou frigoríficos.

A legislação atual, em várias partes do mundo, trata os animais como coisas, podendo seus donos usar e dispor delas como bem entenderem. Pesquisas mundiais, entretanto, revelam que a esmagadora maioria das pessoas condena a crueldade contra animais. Muitos países, como o Brasil, proíbem a crueldade contra os animais, mas, para tornar mais eficiente a defesa de outros seres vivos, discute-se a possibilidade de se outorgar efetivos direitos aos animais. Isso depende de uma decisão política. Depende de uma comunidade reconhecer legalmente que animais merecem respeito e consideração a ponto de serem titulares de alguns direitos fundamentais, como o direito à vida e à liberdade. Sonegar aos animais um catálogo mínimo desses direitos frauda a própria animalidade que nos vivifica e a racionalidade que nos anima.

Obviamente, nem todos os direitos humanos são passíveis de serem outorgados aos animais. Esta diferenciação é a pedra angular do Direito, que trata desigualmente os desiguais na medida de suas diferenças. Não tem sentido se falar em se outorgar o direito ao voto aos animais, por exemplo. Os direitos devem ser outorgados e exercidos de acordo com as características dos titulares.

As grandes transformações nunca aconteceram na base do tudo ou nada. A outorga de direitos aos animais é um debate moral. Embora não seja o ideal, é imperativo que se comece a outorgar alguns direitos, ainda que dentro de limites, como apregoa Steve Wise, da Harvard Law School. O que não se concebe mais é que uma folha de papel, denominada pessoa jurídica, tenha direito subjetivo à sua dignidade moral enquanto animais conscientes são tratados como coisas, e que a violação de uma sepultura ou cadáver humano seja mais relevante para a legislação que o sofrimento de animais.

Anderson Furlan, mestre e doutorando em Ciências Jurídico-Econômicas pela Faculdade de Direito de Lisboa, é juiz federal e autor de livros.

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