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| Foto: Valery Hache/AFP

Não se sabe o que deu em Woody Allen – justo ele – para comentar as acusações de predatismo sexual contra Harvey Weinstein, quando poderia ter ficado caladinho, não se mostrando solidário a um suposto estuprador em série, não acusando as mulheres que ficaram caladas tanto tempo e agora estão botando a boca no trombone de criar “um clima de caça às bruxas”, e não se sentindo inclinado a dar nova declaração, logo em seguida, não só não se desculpando como, na verdade, reiterando a “tristeza” que sentia por Weinstein ser “doente”.

Brincadeirinha! É bem óbvio por que Allen fez uma afirmação dessas, por que não hesitou em incluir a confissão espantosa de que “ninguém veio se queixar para mim, nem contar essas histórias de horror com seriedade”, dando a entender que alguém lhe disse o que Weinstein andava fazendo, mas, com aquela onisciência estranha inerente aos muito ricos, achou que não fosse coisa muito grave. É também bem óbvio por que Allen se sentiu intocável a ponto de acrescentar que, mesmo que tivesse acreditado nas “histórias de horror”, não se interessaria por elas porque é um homem sério, ocupado em fazer arte de gente séria. E completou dizendo que ninguém se daria ao trabalho de ir reclamar com ele porque, em suas próprias palavras: “Não estou interessado. Só estou preocupado em fazer meu filme” (esta última parte, na verdade, faz sentido. Se eu fosse agredida sexualmente por Weinstein, meu último instinto seria pedir ajuda a Allen, literalmente).

Fica claro também por que a disfunção cultural que permite a Allen se sentir à vontade para fazer tal declaração é a mesma que gerou tipos como Allen e Weinstein: a legitimidade opressora, delirante e infinita dos homens poderosos.

Não temos milhões de dólares nem a presidência, mas temos nossas histórias, e vamos continuar a contá-las

Quando Allen e outros homens alertam para “um clima de caça às bruxas, uma volta a Salem”, estão falando de um ambiente no qual se espera que se comportem com cuidado, consideração e medo das consequências que o resto das pessoas chamam de profissionalismo básico e respeito pela humanidade compartilhada. A certa altura, para alguns homens – e vocês podem me chamar de histérica, mas cansei de medir palavras sobre esse assunto –, não há maior injustiça, nem nada pior, tão pouco natural e visceralmente grotesco do que um homem branco ser despedido.

Donald Trump, nosso predador-chefe, parece encarar a eleição de Barack Obama dessa forma – e, como vingança, ele e seus correligionários estão dispostos a destruir o mundo. Este momento cultural catastrófico nasceu dessa mesma noção de legitimidade, das patas de Trump e o robe aberto de Weinstein, dos ciclos antigos de abuso que estão subentendidos no verdadeiro slogan de sua campanha eleitoral: “Se eu não posso tê-la, ninguém mais terá”.

Deixando de lado o diferencial de poder do gênero das caças às bruxas históricas reais (tenho certeza de que não foram todas as vítimas de estupro em Salem que se reuniram para pôr o prefeito na fogueira) e o descaramento patético dos homens se sentindo perseguidos depois de milênios tratando as mulheres feito presas, vou deixar vocês levarem essa. Tá, com certeza, se tanto insistem, é uma caça das bruxas, sim. Eu sou a bruxa e estou à caça de vocês.

Há dias a linha do tempo das minhas redes sociais está entupida de histórias de degradação, assédio no local de trabalho, estupro – a grande maioria mulheres, mas também não binários e homens, usando a hashtag #MeToo para demonstrar a impressionante amplitude e ubiquidade da predação sexual. Uma onda semelhante de relatos se seguiu à fita do Access Hollywood de Trump, à sucessão de acusações contra Bill Cosby e ao assassínio em massa de Elliot Rodger, em 2014, no qual ele explicitamente planejou punir as mulheres que o rejeitaram sexualmente.

Leia também:A violência contra a mulher e o silêncio da sociedade (artigo de Sandra Barwinski, publicado em 27 de janeiro de 2013)

Leia também:Participantes e cúmplices da violência contra a mulher (artigo de Tania Tait, publicado em 17 de junho de 2014)

De uns cinco anos para cá, temos visto uma verdadeira enxurrada de vítimas fazendo denúncias, um número incontável que representa não só o trauma profundo do toque não desejado ou do comentário desumanizador, mas as consequências invisíveis da perda da confiança, da demissão, da carreira interrompida, da diminuição da influência feminina, do poder masculino arraigado.

Fico pensando o que seria da #MeToo se não fosse apenas uma longa lista de pessoas que sofreram com o predatismo sexual, mas sim de vítimas desse tipo de crime que viram seus agressores serem punidos, seja profissional, legal ou pessoalmente. O número seria irrisório. O algoritmo do Facebook simplesmente a engoliria.

Então, Allen e companhia, eu sei que vocês odeiam fofocas e boataria, mas infelizmente esses são os únicos recursos que temos. Nós também queríamos que fosse diferente. Em um sistema justo, Weinstein teria enfrentado consequências devastadoras, sociais e profissionais da primeira vez em que se apresentou a uma mulher de robe e exigiu que ela, horrorizada, lhe fizesse uma massagem. Em um sistema justo, o abuso não teria permanecido como um segredo aberto durante décadas, com ele livre para “traçar” geração após geração de jovens atrizes. A vida de Weinstein, assim como a de Cosby, não é a história de uma derrocada trágica e digna de pena, mas sim de alguém que conseguiu se safar durante muito, muito tempo.

As bruxas estão chegando, mas não querem sua vida. Estamos chegando para reclamar seu legado. O preço de ser Harvey Weinstein é não poder mais ser Harvey Weinstein. Não temos o sistema judiciário do nosso lado; não temos poder institucional; não temos milhões de dólares nem a presidência, mas temos nossas histórias, e vamos continuar a contá-las. Feliz Dia das Bruxas!

Lindy West é autora de “Shrill: Notes From a Loud Woman”.
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