• Carregando...
 | Pixabay/
| Foto: Pixabay/

Basta estar na Internet para saber que ela vem sendo uma poderosa aliada das lutas das mulheres. Apesar de também no mundo online acabarmos ficando na nossa zona de conforto, as pautas e campanhas feministas inevitavelmente furam as bolhas, entram onde não foram convidadas a entrar, convidam à expressão mulheres que nunca se manifestaram sobre situações de machismo vividas e incomodam, muito.

Há dois lados menos visíveis dessa história. O primeiro é de se celebrar: são as redes comunitárias que são criadas ou facilitadas pelas comunicações digitais, para discutir maternagem, para oferecer apoio a vítimas de violência, para articular lutas sociais.

Na Internet se reproduzem as assimetrias que existem no mundo longe dos teclados

O outro é extremamente preocupante e não ganha atenção devida: a violência que meninas e mulheres vivem cotidianamente na Internet. A primeira coisa que vem à mente é que, quanto mais vocais se tornam as mulheres, mais expostas estão a ataques de grupos contrários, tendo em vista especialmente as características sexistas e violentas da sociedade brasileira. É verdade, mas é só parte da história. As violências são multifacetadas, e atingem meninas e mulheres em geral, e de forma ainda mais intensa quando outros fatores estão em cena, como raça, orientação sexual e classe social.

No fundo, a questão é uma só: na Internet se reproduzem as assimetrias que existem no mundo longe dos teclados. Assim como a polarização política que estamos vivendo não encontra suas razões exclusivamente no mundo online, também as hierarquias sociais vão se reproduzindo nas ruas, no trabalho, dentro de casa e nas redes sociais. O que existem são novos instrumentos que viabilizam novas formas de violência, e colocam desafios novos de enfrentamento.

Foram esses desafios que buscamos enfrentar na construção de um relatório sobre violência de gênero na Internet no Brasil, como contribuição para o trabalho da Relatora Especial sobre Violência contra a Mulher da ONU, que este ano está produzindo seu relatório sobre violência online. Foi um processo coordenado por nós, do InternetLab, e pela organização Coding Rights, mas que contou a contribuição de dezenas de mulheres e organizações, de ativistas, jornalistas e pesquisadoras a advogadas, promotoras e defensoras, a partir de reuniões no Rio de Janeiro e em São Paulo, e de articulação à distância pela Internet. Levantamos inúmeros casos concretos, mapeamos as múltiplas formas de violência que vêm sendo cometidas, as respostas jurídicas existentes e as lacunas, e elaboramos recomendações a partir da vasta experiência das pessoas que colaboraram. E chegamos a conclusões que precisam ser debatidas por legisladores, gestores, movimentos sociais e pelo setor privado, aqui entendido como as plataformas de Internet.

Em primeiro lugar, é necessário abandonar já a ideia de que uma violência online é menos grave que outras violências do “mundo real”. Estamos falando de suicídios e tentativas de suicídio cometidas por causa da disseminação de imagens íntimas sem consentimento (conhecido pelo péssimo termo “revenge porn”), que, devido exclusivamente ao machismo, levam a uma espécie de “morte social”; de mulheres que têm de deixar suas casas e cidades porque são vítimas de “doxxing” (exposição de dados privados), e vivem com receio por suas vidas; de abalos psicológicos graves por perseguições (“stalking”); de outras mulheres que têm sua vida online controlada e monitorada por parceiros ou invasores, e que assim não exercem liberdades e não exercem sua expressão plena, entre muitas outras formas de intimidação.

Nossas Convicções: A valorização da mulher

Leia também: Uma leitura feminista dos crimes contra a dignidade sexual (artigo de Marina Ruzzi e Ana Paula Braga, publicado em 11 de outubro de 2017)

Um segundo ponto diz respeito à legislação. Não é verdade que não existem leis aplicáveis para violência no ambiente online. Por exemplo, para o caso de praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, aplica-se a legislação antirracista (Lei 7.716/89), ou, para o caso de ameaça de violência física, aplica-se o artigo 147 do Código Penal, que prevê o crime de ameaça. Há, sim, lacunas importantes, como a ausência de uma lei de proteção de dados pessoais (discute-se a sua aprovação no Brasil desde 2007); ou, ainda, no caso de invasão ou “hacking”, só se pune a invasão de dispositivo informático (Lei Carolina Dieckmann, 12.727/2012), mas não a invasão de contas e perfis em redes sociais.

Mas mais problemas existem na aplicação da legislação. Um exemplo é o caso de disseminação não consentida de imagens íntimas, que é punida como injúria e difamação, crimes de ação penal privada, ou seja, a vítima tem de constituir advogado e tocar o processo, e não o Ministério Público. Isso significa principalmente que a persecução penal dos casos é inacessível para mulheres sem recursos financeiros. No último dia 22 de novembro, no Senado, foi aprovado um substitutivo para o PLC 18/2017 (que era o Projeto de Lei 5555/2013, na Câmara), que altera essa situação. O projeto volta agora para a Câmara. Discutimos a legislação aplicável e a jurisprudência sobre disseminação não consentida de imagens íntimas no livro “O Corpo é o Código”, disponível para download.

Ainda no campo da legislação, vale destacar que pouco se mobilizam alternativas não criminais, como as medidas protetivas da Lei Maria da Penha, principalmente por falta de compreensão de que ela também se aplica para a Internet. Precisamos de jurisprudência nesse sentido. E há que se mencionar que o Marco Civil da Internet, também legislação não penal, inovou de forma bastante positiva, facilitando para a vítima a remoção de imagens íntimas não consentidas suas, em plataformas de Internet.

Muitas soluções propostas demagogicamente têm efeitos perversos para a liberdade de expressão

Mas o direito não são só as leis. Mapeamos, no relatório, as dificuldades que as meninas e mulheres encontram quando levam seus casos às delegacias. O problema começa com as provas: frequentemente a recomendação é que as vítimas façam atas notariais dos prints sobre as violências que sofrem, em cartório. As atas notariais dão fé pública aos documentos, mas uma lauda custa aproximadamente R$ 350 reais! Além disso, é seguro afirmar que as delegacias da mulher não estão equipadas com as capacidades técnicas necessárias para investigar casos assim, e muitas delegacias de crimes cibernéticos, que existem em poucas cidades do país, além de não serem os locais adequados para receber casos de violência contra a mulher, são responsáveis apenas pela investigação de crimes financeiros.

Concluímos também que é essencial que o setor privado se junte à conversa. Na Internet, nossas relações e comunicações estão primordialmente mediadas por plataformas, e não há como escapar das necessárias discussões sobre as suas políticas, e sobre quem as formula e aplica, ou seja, sobre a diversidade nos quadros dessas próprias empresas. Além disso, mapeamos dificuldades no acesso a formulários de denúncia de casos, falta de materiais de apoio em português, e uma ausência quase absoluta de dados sobre denúncia e violência, que permitiriam melhor delineamento do problema e formulação de respostas – ausência que se faz sentir também quanto aos dados do setor público.

No mais, há que se apoiar também estratégias de segurança digital para mulheres e outros grupos vulneráveis, bem como a consolidação de redes feministas online, e ter sempre perto a comunidade de defesa dos direitos digitais. Muitas soluções propostas demagogicamente têm efeitos perversos para a liberdade de expressão, já tão pouco valorizada no Brasil, e afetam assim os potenciais de transformação que a Internet traz. Está claro: nunca uma estratégia unilateral vai resolver esse problema. A solução será multissetorial e multinível, ou não será.

Mariana Valente, advogada, é doutoranda em direito na USP e diretora do InternetLab.
0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]