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| Foto: Albari Rosa/Gazeta do Povo

A recente decisão tomada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), segundo o qual é constitucional o ensino religioso confessional nas escolas públicas brasileiras, é desastrada – ou melhor, é catastrófica; não há como qualificá-la em termos mais brandos. Pura e simplesmente, a maioria da corte – composta, no caso, pela presidente do tribunal, a ministra Cármen Lúcia; pelo “filopetista” Ricardo Lewandowski; pelos petistas Edson Fachin e Dias Toffoli; e pelos paragovernistas Alexandre de Moraes e Gilmar Mendes – errou e esse erro custará caro ao país, em diversos sentidos. Antes de prosseguirmos, convém notar que a maioria favorável ao ensino religioso confessional votou contrariamente ao parecer do relator, o ministro Luís Roberto Barroso (embora este tenha tido o apoio dos ministros Luiz Fux, Rosa Weber, Marco Aurélio Mello e Celso de Mello).

Qual a polêmica? A possibilidade ou não de as aulas de Ensino Religioso nas escolas públicas terem um caráter laico ou confessional: no caso de serem laicas, seriam cursos que conjugariam história, filosofia e antropologia das religiões, com um caráter comparativo e científico; no caso de serem confessionais, seriam aulas ministradas por sacerdotes das várias religiões, mormente os cristianismos (católico, luterano e evangélicos de modo geral). Na opinião do Ministério Público Federal, que iniciou a ação em 2010, essa disciplina teria de ser laica, entendendo que a versão confessional feriria a laicidade do Estado e permitiria o proselitismo.

Qual a necessidade de inscrever na Constituição Federal a obrigatoriedade de lecionar uma disciplina qualquer?

A base para essa polêmica está na Constituição Federal de 1988, a que se segue, como consequência, a Lei 9.394/1996, a Lei de Diretrizes e Bases da educação nacional (LDB): ambas citam expressamente a disciplina de “Ensino Religioso”, a ser ministrada nas escolas públicas nos horários regulares, embora com caráter facultativo. O que se deve notar é que a Constituição Federal de 1988 estabelece em seu artigo 19 – como uma de suas cláusulas pétreas – a impossibilidade de o Estado professar, apoiar ou obstar qualquer fé ou doutrina religiosa, o que consiste precisamente na laicidade do Estado. Mas, ao mesmo tempo, a única disciplina expressamente citada na Constituição, no artigo 210, é a de Ensino Religioso: nem Português, nem Matemática, nem História, Geografia ou qualquer outra goza desse monstruoso privilégio. Deve-se notar que, se houvesse a necessidade de citar na Constituição alguma disciplina obrigatória, ela deveria ser a Língua Portuguesa, que, afinal de contas, é definida como a língua oficial da República (artigo 13).

E é mesmo um privilégio. Afinal de contas, qual a necessidade de inscrever na Constituição Federal a obrigatoriedade de lecionar uma disciplina qualquer? Será que havia, ou há, algum medo de que, sem a imposição da força do Estado, a “religião” perdesse influência social e política? Ora, ninguém tem medo de que a língua portuguesa vá “perder influência” social no Brasil; ou, por outra, ninguém teme que a matemática se torne um conhecimento obsoleto: por esses motivos, ninguém se deu ao trabalho estapafúrdio de torná-las disciplinas constitucionalmente obrigatórias.

Opinião da Gazeta: O STF e o ensino religioso nas escolas públicas (editorial de 22 de agosto de 2017) 

Mas por que é “monstruoso” esse privilégio? Porque ele se utiliza da força do Estado para impor aos estudantes (jovens e adultos) as doutrinas teológicas, conforme ensinadas e propaladas pelos respectivos sacerdotes. Sem dúvida alguma os ministros do STF que defenderam o ensino religioso confessional observaram, todos, que esse ensino não pode ser proselitista; entretanto, a esse respeito, ou os ministros são ingênuos ou são ignorantes. Embora a decisão do STF seja federal, a disciplina de Ensino Religioso deve ser oferecida e regulamentada pelas redes municipais e estaduais de ensino; nesse sentido, há estados brasileiros que estabeleceram um Ensino Religioso claramente confessional, com sacerdotes fazendo concursos públicos para serem professores: é o caso do Rio de Janeiro, que, sabidamente, há décadas é governado por evangélicos (de direita ou de esquerda, tanto faz). É certo que também há estados que definiram o ensino religioso em bases laicas, como no caso exemplar de São Paulo. Entre esses dois extremos, as unidades da Federação definiram diretrizes “pluriconfessionais”, sempre com a restrição que veda o proselitismo; todavia, o mais das vezes essa limitação é pura letra morta, com padres e pastores (ou seus epígonos) fazendo pregação em sala de aula à custa do erário. Isso, é claro, para não falar dos crucifixos onipresentes nas escolas, nas orações (cristãs) antes das aulas etc. Nesses termos, a ressalva de que o ensino religioso não deve ser proselitista deve ser entendida meramente como uma forma de os ministros do STF terem um mínimo de paz de espírito enquanto violam claramente a laicidade do Estado.

Antes de prosseguirmos na argumentação mais teórica, convém notar que o caráter confessional do ensino religioso exigirá dos estados e municípios sacerdotes de todas as religiões professadas pelos alunos. Ora, isso é completamente impraticável: nenhuma escola poderá perder tempo procurando sacerdotes de cada uma das religiões dos seus alunos. Problemas arquiconhecidos, como o absenteísmo dos professores, as questões salariais, a violência nas escolas, as instalações precárias, o baixo aproveitamento dos alunos e muitos outros ocupam à exaustão o dia a dia das escolas: a procura de sacerdotes é um incômodo que diretores e pedagogos das escolas não quererão ter. A consequência disso, sem dúvida, é que buscarão apenas dois ou três sacerdotes, provavelmente um padre católico e um pastor de alguma seita evangélica: alunos de outras religiões (incluindo aí os que não têm religião) serão forçados a aceitar a solução imposta pelo menor esforço. Esses sacerdotes, além disso, a despeito de suas divergências teológicas, organizar-se-ão em associações de professores de Ensino Religioso e passarão a atuar como grupos de pressão no sentido de tornarem-se funcionários públicos, como ocorre no Rio de Janeiro.

Nossas convicções:O Estado laico

Do ponto de vista pedagógico, mesmo que seja “facultativo” o ensino religioso, e mesmo que se diga que ele não deve ser proselitista, o fato é que ele criará uma distinção profundamente danosa para os alunos, geradora de exclusão e preconceito – exatamente o oposto do que se pretende para a escola, pública ou não. Por que terá esses efeitos? Porque, como a maioria dos alunos é (nominalmente) cristã, alunos que professam outras doutrinas não participarão das atividades da maioria: se a preocupação com a aceitação coletiva é grande entre os adultos, entre crianças e adolescentes é gigantesca. Quem não participar das atividades da maioria será e sentir-se-á excluído, percebido como alguém “de fora”, que não participa da coletividade que é a turma. Em vez de integrar, haverá exclusão; para evitar essa exclusão, muitos alunos fingirão professar uma fé que, na verdade, não professam: hipocrisia institucionalizada e incentivada pelo Estado. Isso não é uma simples hipótese: é prática corrente em escolas do país inteiro; notícias de discriminação religiosa realizada entre alunos – quando não estimulada francamente pelos professores – são lidas todos os dias nos meios de comunicação.

Voltemos à argumentação dos ministros do STF. Os defensores do ensino religioso confessional consideraram que o modelo laico não seria apropriado devido a duas ordens gerais de motivos sociológicos: em termos históricos, o catolicismo teria tido uma importância central na formação do país, devendo-se valorizar e respeitar esse legado; em termos atuais, a maioria dos brasileiros é cristã ou, de qualquer maneira, professa alguma religião. Esses dois fatos estão vinculados e, sem dúvida, são verdadeiros: o problema consiste em deduzir deles qualquer política pública. Alguns ministros do STF disseram que a laicidade não pode ser entendida como a proibição das manifestações públicas dos valores religiosos; daí a defesa do ensino religioso confessional.

Ora, de fato, a laicidade não proíbe a manifestação pública dos valores e das práticas religiosas; bem ao contrário, é precisamente a laicidade que garante a liberdade às religiões quaisquer para manifestarem-se em público. A história do Brasil – que foi usada como esteio para a defesa canhestra do ensino religioso confessional – é a maior prova de que a laicidade é a garantia das liberdades: a primeira Constituição do Brasil foi a imperial, de 1824. Nela afirmava-se o catolicismo como a religião oficial, permitindo-se o exercício privado de outras religiões. O que significa o “exercício privado” de outras religiões? Os adeptos de outras crenças poderiam realizar seus cultos em suas casas; até poderiam ter seus próprios templos, desde que esses templos não tivessem o “aspecto exterior” de templos, ou seja, desde que não rivalizassem com as igrejas católicas. Além disso, os registros de nascimento, casamento e óbito, bem como a administração dos cemitérios, cabiam todos à Igreja Católica; apenas católicos podiam ser registrados como nascidos, casados e mortos, além de enterrados em cemitérios oficiais.

Podcast Ideias: Estado laico combina com ensino religioso? 

Valorizar a história não é o mesmo que a aceitar passivamente, como dão a entender os ministros da mais alta corte do país. Um exemplo banal, ainda que polêmico: em suas obras infantis, Monteiro Lobato expressou, por meio da Emília, ideias e valores que hoje chamamos de preconceituosas, denegrindo Dona Benta, que era negra. Embora haja diversos movimentos sociais favoráveis à exclusão desses belos livros das bibliotecas públicas, ou seja, a favor da censura, o mais correto é manter esses livros nas bibliotecas e nos currículos, ao mesmo tempo em que, nas salas de aula e nos textos que circulam pela sociedade, faz-se a contextualização das palavras da Emília, o reparo de que são palavras injuriosas etc. Aliás, o mesmo pode ser dito a respeito da Bíblia: nela há dezenas de passagens assustadoras, como apostas entre Deus e o diabo, o elogio da escravidão, do genocídio, da venda de filhos, do assassinato de primogênitos etc.; ou, então, com prescrições que hoje consideramos risíveis, como a impossibilidade de comer frutos do mar; mesmo as supostas mensagens de amor do essênio Jesus Cristo eram dirigidas aos seus irmãos judeus, tendo sido necessário que Paulo de Tarso (re)inventasse o mito de Cristo para que sua religião fosse propagada. Em suma: respeitar o papel histórico de Monteiro Lobato ou até da Bíblia e do catolicismo não equivale a aceitar suas observações como válidas perenemente.

O argumento demográfico é o mais perigoso e o mais especioso. Afirmar que a maioria da população brasileira é cristã, ou, de modo equivalente, que ela tem crenças “religiosas” é o primeiro passo para acabar com a laicidade, ou seja, para instituir a religião oficial de Estado: esse é o primeiro – na verdade, o único – argumento de quem é contrário à laicidade. Mas esse argumento estabelece que o mero peso numérico de uma determinada crença torna aceitável que ela seja imposta a todos os indivíduos em matérias de foro íntimo. Mais do que isso: esse raciocínio estabelece que o mero peso numérico de uma concepção estabelece a verdade, a realidade dessa concepção. Dessa forma, porque caso (digamos) 99% dos brasileiros acreditem que todas as maçãs são rosa-choque, o 1% restante também deverá necessariamente acreditar nisso. Em outras palavras, são as liberdades de pensamento e de expressão que estão em jogo aí: não é precisamente esse um dos argumentos do movimento “Escola sem Partido” (o fato contraditório de que esse movimento é favorável ao ensino religioso confessional diz bastante a seu respeito)? Afastando-nos um pouco do Brasil: não é exatamente esse o raciocínio dos líderes muçulmanos do Estado Islâmico, da Arábia Saudita e de outros lugares?

Valorizar a história não é o mesmo que a aceitar passivamente, como dão a entender os ministros da mais alta corte do país

Assim, o que subjaz ao “argumento demográfico” é uma concepção profundamente equivocada do que significa o “governo pela opinião pública”. Essa concepção postula que a “opinião pública” é a mera soma aritmética dos humores individuais a respeito de algum assunto, em algum momento – e que tal soma tem valor normativo. Diga-se de passagem, esse mesmo raciocínio serviu de base para a recente e desastrada iniciativa de um ministro do Supremo Tribunal de Justiça para avaliar, na internet (!), o apoio popular a uma eventual intervenção militar na República.

Justamente ao contrário, o “governo pela opinião pública” consiste em que as ações dos governantes têm de se pautar pela moralidade humana e pela busca do bem comum, com políticas e valores universais, universalistas e includentes, assim como pelo diálogo com a sociedade. Sem dúvida que o escrutínio público contínuo das ações governamentais integra o “governo da opinião pública”, mas, como estamos vendo, a parte mais importante deste conceito consiste em que as diretrizes políticas dele decorrentes não ficam à mercê de humores momentâneos das disputas políticas, nem consistem em versões gigantescas do assembleísmo. A crítica à laicidade é feita justamente por intelectuais e grupos que, embora digam-se “populares” ou “progressistas”, na verdade são excludentes, particularistas e que buscam a obtenção do poder, para imporem seus valores.

Assim, a laicidade é um dos parâmetros fundamentais do “governo pela opinião pública”; como observamos antes, ela garante as liberdades de pensamento e de expressão e evita que questões de foro íntimo sejam impostas pelo Estado e/ou decididas pelo peso numérico dos demais concidadãos. Não é à toa que, integrando o artigo 19 da Constituição Federal de 1988, ela é uma cláusula pétrea da nossa pólis.

Face a isso, é claro que o ideal seria simplesmente suprimir da Constituição (e, por extensão, da LDB) a exigência de ensino religioso nos currículos das escolas públicas; mas, como isso é virtualmente impossível no Brasil atual, a solução menos daninha é, ou seria, implantar um ensino religioso laico. Como o STF decidiu em contrário, tendo à frente no clericalismo de Estado os ministros Cármen Lúcia e Gilmar Mendes, as perspectivas sociais e políticas que se descortinam para o país são as piores possíveis: é um completo desastre que se anuncia.

Gustavo Biscaia de Lacerda é doutor em Teoria Política e sociólogo da UFPR.
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