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 | Roberto Custódio/Arquivo Jornal de Londrina
| Foto: Roberto Custódio/Arquivo Jornal de Londrina

Na literatura criminológica e penal críticas há um consenso: o Direito Penal é o direito desigual por excelência, entre outras coisas porque o sistema penal é a reprodução do sistema social. O Direito Penal não defende os bens essenciais de todos os cidadãos e o status de criminoso é distribuído de modo desigual. O grau de tutela dos bens jurídicos penais depende de fatores típicos da “sociedade dividida” e da vulnerabilidade do cidadão. A distribuição do status de criminoso também responde ao padrão da sociedade de classes, porque o processo de seleção se dirige a comportamentos típicos de indivíduos pertencentes às classes subalternas, pela contradição às relações de produção e distribuição capitalista.

O maior exemplo disso não está apenas na imunidade das classes mais favorecidas nos delitos econômicos, mas também na realidade operacional do Direito Penal patrimonial. Por essa razão, a doutrina penal crítica interpreta o bem jurídico patrimônio de forma restritiva, de modo a evitar o risco da hipertutela especialmente nos casos de falta de função social (artigo 5.º, XXIII, da Constituição). Assim, não é de hoje, no Direito Penal o conceito de patrimônio é reconstruído desde uma perspectiva funcional às finalidades básicas de desenvolvimento da personalidade, como defende Sergio Moccia em Tutela penale del patrimonio e principi costituzionali.

Isso já seria suficiente para exigir mais do que o mero ajuste formal ao texto da lei, que, por exemplo, no caso do furto, estabelece como infração “subtrair coisa alheia móvel”. Também é imperioso um requisito de ordem material, ou seja, a conduta criminosa deve ofender e colocar em risco o bem jurídico-penal tutelado – no caso, o patrimônio. Afinal, não existe o Direito Penal para outra coisa senão para proteger bens jurídicos.

Situações toscas que diariamente ocorrem em lojas de departamento não devem gerar nem prisão em flagrante, nem muito menos processo

No Estado Democrático de Direito, o Direito Penal não é medida de primeira mão, mas de ultima ratio, somente devendo incidir em situações de maior gravidade, especialmente quando outras instâncias de controle não se mostram efetivas e suficientes. Pensar diferente disso é que contribui para a deslegitimação social e jurídica do Direito Penal.

Em relação aos chamados “delitos de bagatela”, a jurisprudência brasileira tem usualmente aplicado o chamado “princípio da insignificância” para afastar a tipicidade material de condutas que não chegam a lesionar de modo grave e irreparável o bem jurídico protegido. Na linha adotada pelo STF – como no julgamento do HC 84412-0-SP, em que o relator foi o ministro Celso de Melo –, o princípio da insignificância seria um “fator de descaracterização material da tipicidade”. Nesse precedente, reproduzido cegamente, estabeleceu-se, como uma espécie de mágica dogmática absolutamente irracional, os seguintes critérios para aplicação: “(a) a mínima ofensividade da conduta do agente, (b) a nenhuma periculosidade social da ação, (c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e (d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada”.

Entretanto, esses critérios são equivocados porque desprezam o princípio de intervenção mínima e o direito penal de ato. A periculosidade social da ação é expressão de direito penal de autor; o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento é um problema de culpabilidade e não de tipicidade material; a inexpressividade da lesão provocada conflita com a ideia de mínima ofensividade da conduta.

Na verdade, para além dos critérios estabelecidos pelos tribunais para aplicação da insignificância, muito mais próximos de uma “política judiciária” do que da técnica doutrinária própria à compreensão do assunto, a incidência ou não do princípio depende do desvalor do resultado decorrente do fato criminoso propriamente dito. Em outras palavras, a aplicação correta do princípio de intervenção mínima, que restringe de forma tácita o alcance e o tipo, deveria se restringir aos casos de mínimo desvalor objetivo da conduta ou do resultado, ou também por desvalor subjetivo da ação. Com um cuidado especial nos delitos patrimoniais: circunstâncias concretas da realidade da vítima, alheias aos demais, podem cobrar significação ao desenvolvimento da personalidade, o que já indica o risco de padronização dos requisitos de intervenção penal.

Leia também:  Mentiras do cárcere (artigo de Diego Pessi e Leonardo Giardin, publicado em 11 de julho de 2017) e As verdades do cárcere (artigo de Janaína Homerin, publicado em 28 de julho de 2017)

Situações toscas que diariamente ocorrem em lojas de departamento – furtos de chocolates, carnes, frutas, produtos de higiene pessoal, entre outras situações similares –, a despeito de serem moralmente reprováveis e socialmente indesejáveis, não autorizam a deflagração da persecução penal. Essas situações não devem gerar nem prisão em flagrante, nem muito menos processo. Assim deve ser porque os recursos humanos e materiais do Direito Penal devem ser direcionados para condutas com efetiva reprovabilidade social.

Diferentemente do que se pensa o senso comum, não há maior espaço à “impunidade” do que ocupar o Direito Penal com a irrelevância da bagatela. A pretexto de se reprimir todo e qualquer crime por igual, nada pior para a convivência social do que a banalização do instrumento repressivo de controle social que somente deve incidir nos casos realmente mais graves.

Jacson Zilio é professor de Direito Penal e Criminologia da UFPR e doutor pela Universidade Pablo de Olavide (Sevilha, Espanha). Marcio Berclaz é professor de Processo Penal da Universidade Positivo e doutorando pela UFPR.
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