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 | Hugo Harada/Gazeta do Povo
| Foto: Hugo Harada/Gazeta do Povo

Dados estatísticos recém-divulgados indicam que cerva de 40% dos brasileiros do sexo masculino consideram que a responsabilidade pelo estupro de uma mulher pode ser dela mesma, dependendo do seu comportamento ou da roupa que use. O fato surgiu como se uma nova realidade fosse descortinada, quando o que se manifesta é aspecto profundamente arraigado na sociedade, o da lógica de dominação.

A imposição de vontade, de domínio, de geração de uma sociedade onde há submissos que devem servir aos outros, tem se manifestado de forma permanente ao longo da história brasileira, que tem exemplos emblemáticos, como o prolongado e cruel regime escravocrata; a imposição não somente do encarceramento aos condenados, mas, necessariamente, de maus tratos; a leniência social com espancamentos, torturas e linchamentos – ou seja, aspectos distintos, porém sempre representativos da mesma lógica, baseada na relação entre dominadores e dominados.

A lógica da pedofilia e do estupro é a mesma: dominar pela imposição da sexualidade

No campo da sexualidade, a retirada da liberdade de escolha da pessoa sobre o seu corpo é uma das marcas mais claras da subtração da sua condição de sujeito, estabelecendo-a como objeto, ou seja, como coisa dominada a serviço do dominador, o que se manifestou, de forma muito clara, em regimes como o feudal na Europa, em que o jus primae noctis garantia ao senhor feudal o direito de passar a noite de núpcias com a noiva de seus vassalos.

Segundo dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), do Ministério da Saúde, cerca de 30% dos atos de violência contra menores são de natureza sexual, sendo que as estimativas são de que 76% das pessoas que acessam sites de pedofilia estejam no Brasil. Assim, embora comum que se olhe a pedofilia como de maior presença em países estrangeiros, os números indicam que a maioria dos pedófilos do mundo está domiciliada no Brasil.

O desejo de dominação e a satisfação dele obtida têm na pedofilia manifestação bastante clara, por ser ato que se reveste do controle sobre a sexualidade de pessoa vulnerável, que se encontra em formação de personalidade, desenvolvimento de valores e construção de suas noções de certo e errado, ou seja, articula-se um controle integral, inclusive com possibilidades reais de domínio pleno, criando um ser desprovido da real capacidade de fazer opções, com tendência à pura repetição comportamental, ou seja, com tendência a servir indefinidamente ao dominador.

Não há contradição que na mesma sociedade em que os números em torno da pedofilia sejam tão expressivos também seja presente, de forma intensa, a ideia de que a mulher deve ser estuprada, dependendo de sua roupa ou de seu comportamento, pois a lógica é a mesma: dominar pela imposição da sexualidade, retirando da vítima a condição de sujeito, com a perda de sua noção de autopertencimento.

A questão não pode ser analisada de forma simplista, com base na cômoda divisão em bons e maus, pois, se quase metade da população masculina do país considera o estupro justificável em algumas situações e o número de acessos aos sites de pedofilia no Brasil é tão expressivo, a questão é muito mais profunda.

Igualmente, se é fato que há presença de conceitos machistas, colocando mulheres sempre em situação vulnerável, também é correto que essa concepção distorcida, em que os seres humanos sentem-se superiores a outros por razões de gênero, não encerra todo o problema que precisa ser equacionado também sob a ótica da cultura do domínio, pela qual a necessidade de sentir-se único faz pessoas atuarem em opressão de outras.

Nesse sentido, parafraseando Mandela, quando diz que o ser humano não nasce odiando, mas aprende a fazê-lo e, portanto, pode aprender a amar, ele não nasce dominando, aprende a assim agir e, portanto, pode aprender a construir com base na efetiva igualdade e liberdade nas relações.

Adel El Tasse é procurador federal e professor de Direito Penal.
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