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Capitão América: Guerra Civil teve uma excelente divulgação nas redes sociais, sobretudo porque os meios virtuais parecem polarizados o suficiente para que - não importa o assunto - todos estejam apartados em grupos rivais. Antes era apenas uma questão política, mas hoje até mesmo as nossas escolhas culinárias (comer carne ou não, por exemplo) longe de nos vincular à um estilo de vida, nos dizem, em última instância, “de que lado estamos”. É este o tom para praticamente tudo o que se compartilha. Então, como todas as pessoas de bom senso, diante do #teamcap e #teamstark, eu escolhi um lado e assisti ao filme.

A primeira coisa a ser destacada é que o tema levantado por Guerra Civil seria muito mais impactante se os filmes dos Vingadores possuíssem a mesma sobriedade que o Batman produzido por Christopher Nolan ou pelo menos o mesmo tratamento dado aos personagens da Marvel nas produções lançadas pela Netflix. As muitas tiradas - e ainda culpam apenas o Homem Aranha por falar demais - acabam tirando o foco.

Na vida real não falta o elemento mencionado nestas “distopias”: o fervor pelo governo de parte tão considerável dos cidadãos e heróis

Vamos ao ponto crucial da Guerra: o conflito entre liberdade e segurança pública, lados representados, respectivamente, pelo Capitão América e Homem de Ferro. Os super heróis salvam o mundo, mas os sucessivos desastres causados pelas suas ações - mortes de civis - impõe que os governos tenham controle sobre quando e em que condições eles devem agir. Se não se vincularem ao novo acordo proposto, os heróis passam a não contar mais com a legalidade de seus atos - serão considerados como criminosos. O ponto mais interessante, na minha opinião, é como o lado que se opõe à liberdade acaba revelando facetas autoritárias, por mais nobres que sejam suas razões. Quem precisou fazer reféns para, digamos, “proteger” os heróis de suas próprias escolhas? O Homem de Ferro, prendendo a Feiticeira Escarlate. Quem tinha do seu lado uma representação fiel do que é o militante, que pouco faz além de obedecer as diretrizes? Team Stark.

Eu não estou dizendo isto apenas porque sou indubitavelmente do #TeamRogers. Tony Stark teria a minha aprovação se, agindo individualmente, estivesse disposto a barrar qualquer ação do Capitão América que ele julgasse prejudicial ao bem comum das pessoas que ele desejava defender. O problema é justamente a sua vinculação ao governo, esta entidade ao mesmo tempo abstrata e palpável, que jamais foi confiável em qualquer parte do mundo. John Stuart Mill escreveu no século 19 que o papel do governo é prevenir que outras pessoas façam mal a um indivíduo e que jamais tem qualquer direito de interferir na esfera do indivíduo para o bem do indivíduo.

Pela premissa, pode parecer que a decisão do acordo de Guerra Civil está justamente do lado do Homem de Ferro: trata-se de proteção contra as pessoas inocentes, mortas em decorrência das intervenções heroicas. Bem, só se você considerar que os super heróis estavam se divertindo arremessando prédios uns contra os outros, e não defendendo as pessoas em geral dos vilões - estes sim, com passaporte livre para destruir todos os prédios do quarteirão, caso os heróis não reduzissem o número. É uma questão óbvia não muito bem explorada pelo filme que a vinculação ao governo não vai reduzir as mortes civis, salvo se isto significar não liberar os heróis para socorrer o local atacado. Certo, há um acordo. O que acontece, então? O Capitão América arremessa o escudo um menor número de vezes? A Viúva Negra se compromete a trocar suas armas do mesmo jeito que a polícia inglesa não tem mais armas de fogo? O governo está em consonância com os limites estabelecidos por Mill em Liberdade protegendo as pessoas de sofrerem danos ou está simplesmente agindo sobre a livre escolha dos heróis em agir? Para o herói fora da lei sequer vale a Lei aplicada à legítima defesa ou coisa que o valha, algo como “ Ok, se você matar alguns defendendo milhares, a coisa será mais branda” -, mas ao contrário: são tratados com o devido rigor de quem não se submeteu de antemão. Nos quadrinhos, o tema da crescente vigilância do governo sobre os seus cidadãos ganha mais espaço, sobretudo porque num filme de duas horas e meia não é possível explorar tantos aspectos e personagens ao mesmo tempo.

Como o filme é ficção, o Homem de Ferro logo reconhece que estava mesmo do lado errado e se junta ao Capitão América. Na vida real, com não menos tiradas e muito menos de pancadaria - pelo menos do ponto de vista dos prédios caindo - não falta o elemento raramente mencionado nestas “distopias”: o fervor pelo governo de parte tão considerável dos cidadãos e heróis.

Luciana Lachance é professora, formada em Letras e mantém o blog As Chamas do Lar Católico.
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