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Dada a admissibilidade, pela Câmara dos Deputados, do pedido de cassação do mandato da presidente da República, Dilma Rousseff, surgem especulações na mídia no sentido de uma provável – ou possível – renúncia por parte da chefe do Poder Executivo. A pergunta que surge, primeiramente, é a seguinte: poderia a presidente renunciar ao seu mandato no curso do processo de impedimento constitucional?

A questão não é nova. Surgiu em outra oportunidade, por ocasião do processo e julgamento do ex-presidente Fernando Collor de Mello pelo Senado Federal. Na ocasião, porém, tratava-se de processo de cassação de mandato já em fase de finalização. No fim do processo, Collor renunciou ao seu mandato. Tendo sido a denúncia julgada procedente, foi editada pelo Senado resolução legislativa fixando-lhe a sanção de inabilitação para o exercício de funções públicas pelo período de oito anos. O pedido de aplicação da outra sanção, correspondente à perda do cargo, foi considerado prejudicado em virtude da renúncia. As duas sanções encontram-se previstas na Constituição de 1988, no artigo 52, parágrafo único, o qual dispõe que, na sessão de julgamento de autoridades perante o Senado Federal, por crime de responsabilidade, “funcionará como presidente o do Supremo Tribunal Federal, limitando-se a condenação, que somente será proferida por dois terços dos votos do Senado Federal, à perda do cargo, com inabilitação, por oito anos, para o exercício de função pública, sem prejuízo das demais sanções judiciais cabíveis”.

O Supremo decidiu que o processo de impeachment tem início a partir de votação do Senado por maioria simples

Contra referida resolução (a sentença do Senado Federal), a defesa do ex-presidente impetrou mandado de segurança perante o Supremo Tribunal Federal, alegando, em síntese, que a renúncia ao mandato tornaria inexequível a decisão do Senado. Ao proferir julgamento sobre referido mandamus, o Supremo afirmou competir ao Senado, e tão somente a ele, fixar a dupla condenação, cumulativamente e não alternativamente, haja vista a expressa previsão constitucional. Em outras palavras, o Supremo firmou entendimento no sentido de que a Constituição determina ao Senado, em caso de condenação do presidente, aplicar as duas sanções, e não apenas uma delas. Ato contínuo, é de se compreender que a renúncia do ex-chefe do Poder Executivo não poderia retirar – como, de fato, não retirou – do Senado a competência constitucionalmente atribuída de, em caso de condenação, aplicar a dupla sanção.

Hipótese semelhante e, ao que parece, mais próxima do que se experimenta na prática dos dias de hoje, é a da possibilidade de retirada de medida provisória da pauta de votação do Congresso Nacional por meio da edição de uma segunda medida provisória. Trocando em miúdos, cuida-se, aqui, de hipótese em que o presidente da República edita medida provisória com o objetivo de ab-rogar medida provisória já sob análise pelo Congresso Nacional. A situação é interessante porque, no julgamento de medida cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade 2.984, o Supremo Tribunal Federal decidiu pela inconstitucionalidade de tal manobra, por implicar retirar do Congresso Nacional a possibilidade de análise de ato legislativo já submetido ao seu exame, o que caracteriza, de acordo com o tribunal, interferência indevida em competência constitucionalmente atribuída ao Congresso: proceder ao exame de constitucionalidade da medida provisória ab-rogada (assim como da medida provisória ab-rogante). Nesse respeito, é importante observar que muito provavelmente não haveria tempo hábil para uma possível ingerência presidencial na pauta legislativa: a medida provisória, tão logo editada, deve ser submetida em até 48 horas, pelo presidente da República, ao Congresso Nacional.

Apesar das sensíveis diferenças, os dois casos citados possuem um ponto – ou um princípio – em comum: retirar da pauta legislativa proposição já apresentada para deliberação e votação parlamentar. O processo de impeachment, uma vez instaurado, já integra a pauta de deliberação e votação do Senado Federal, de modo que, a depender da jurisprudência do Supremo nesse respeito, conforme visto, não poderá ser retirado na hipótese de renúncia pela chefe do Poder Executivo. Trata-se, deve-se precisar, de assunto de competência do Senado, matéria já incluída em pauta para deliberação e votação, como observado anteriormente.

E eis que surge uma segunda pergunta: quando, então, tem início o processo de cassação do chefe do Poder Executivo no âmbito do Senado? Haveria, afinal, um período dentro do qual a presidente poderia renunciar, sem implicar interferência na pauta de deliberação e votação do Senado? O Supremo, ao definir o rito de impeachment válido de agora em diante no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 378, decidiu, por maioria, quanto a este ponto em específico, que o processo de impeachment tem início a partir de votação do Senado por maioria simples nesse sentido. Trata-se de juízo preliminar ao juízo de mérito da Casa sobre o pedido de impeachment. Eis as palavras do Supremo Tribunal Federal quanto ao ponto: “Conclui-se, assim, que a instauração do processo pelo Senado se dá por deliberação da maioria simples de seus membros, a partir de parecer elaborado por Comissão Especial, sendo improcedentes as pretensões do autor da ADPF de (i) possibilitar à própria Mesa do Senado, por decisão irrecorrível, rejeitar sumariamente a denúncia; e (ii) aplicar o quórum de 2/3, exigível para o julgamento final pela Casa Legislativa, a esta etapa inicial do processamento”.

Por esses motivos, do ponto de vista jurídico, eventual renúncia da presidente da República deveria, ao menos em tese, ocorrer antes da deliberação e votação do Senado nesse juízo preliminar de formalização da acusação, caso se tenha como objetivo afastar a dupla condenação expressamente prevista no texto constitucional. Salvo se houver, nesse interregno, mais uma emenda à Constituição de 88.

Ana Lucia Pretto Pereira é advogada, pós-doutora e professora de Direito Constitucional na graduação e no mestrado da UniBrasil.
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