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Em dias de intensos acontecimentos políticos, passou praticamente despercebida, pela imprensa, uma importante decisão do STF sobre o sistema penitenciário. Sob aplicação da regra da repercussão geral, em que os casos similares deverão receber o mesmo entendimento, o Supremo reassegurou o artigo 5.º, XLIX, da Constituição Federal, obrigando o Poder Executivo a oferecer condições dignas aos presos e lhes assegurar as garantias fundamentais e determinando que, no caso de morte dentro de estabelecimento prisional, há de prestar indenização à família.

Tal decisão se insere num contexto maior que, junto a duas outras recentíssimas decisões, compõe um tripé de sustentação a uma efetiva chacoalhada na questão penitenciária. Uma delas expõe as condições desumanas a que os presos estão sujeitos e, sob relatoria do ministro Ricardo Lewandowski – que não por acaso intitulou um capítulo de seu voto “descida ao Inferno de Dante” – julgou ser “lícito ao Judiciário impor à administração pública obrigação de fazer, consistente na promoção de medidas ou na execução de obras emergenciais em estabelecimentos prisionais” sem que isso viole o princípio da separação dos poderes. Observa-se, na ementa, não ser oponível à decisão o argumento da “reserva do possível”; noutras palavras, prisão que não ofereça condições mínimas de salubridade e dignidade deve ser reformada ou desativada, sem desculpas, justificativas ou impedimentos.

A sociedade não deseja conforto ao presidiário, mas a oferta de salubridade e dignidade

Completa o tripé outra decisão, sob relatoria do ministro Marco Aurélio, o qual constatou que os presos “tornam-se lixo digno do pior tratamento possível, sendo-lhes negado todo e qualquer direito à existência minimamente segura e salubre”; ele reconheceu o “estado de coisas inconstitucional” do sistema penitenciário nacional, num “quadro de violação massiva e persistente de direitos fundamentais, decorrente de falhas estruturais e falência de políticas públicas e cuja modificação depende de medidas abrangentes de natureza normativa, administrativa e orçamentária”, para então liberar os recursos do Funpen, o fundo penitenciário, e proibir a prática de seu contingenciamento, bem como determinar a instalação das audiências de custódia pelo Poder Judiciário – aos leitores que quiserem se aprofundar, os processos no STF são o RE 841526-RS, o RE 592.581-RS e a Medida Cautelar na ADPF 347-DF.

O expresso reconhecimento, pela corte suprema, da falência do sistema penitenciário, autorizando ordens judiciais mandando executar obras e medidas e liberando recursos ao setor, traz a lume um problema que se configura impopular, pois grande parcela da sociedade entende a prisão como uma justa expiação, verdadeira vingança ao delinquente. Não sem razão, pois, cansada e assustada com a insegurança, não vislumbra qualquer perspectiva de melhoria na segurança pública. Pior: no âmbito do sistema penitenciário, salvo honrosas e raras exceções, resumidas a iniciativas isoladas, denota-se a falta de interesse no desenvolvimento e implementação de corretas políticas públicas.

Num quadro em que nem sequer existe espaço disponível no sistema prisional para a instalação de mais presos, a violação cotidiana não é apenas à Constituição, mas às leis da física, restando aos juízes elastecer ao máximo a adoção de penas alternativas à privação de liberdade, mesmo aos que não necessariamente fariam jus, com o que se estabelece um perigoso ciclo vicioso de sensação de impunidade, que em última análise pode conduzir a deformidades, como justiçamentos e linchamentos.

Ninguém, em boa fé, espera que o poder público garanta moleza e conforto aos encarcerados; pelo contrário, há o desejo de punição pelos crimes cometidos, sem privilégios, e que sejam úteis à sociedade e a si mesmos, ainda que atrás das grades. Há, entretanto, de lhes garantir a incolumidade física e salubridade do ambiente, com as condições mínimas de habitabilidade. Foi esse o mandamento do STF, com base na Constituição Federal e nos tratados internacionais de direitos humanos.

A grande questão se que coloca é quanto à factibilidade da reparação, pela administração pública, de um sistema que há décadas não funciona de forma satisfatória. Será que, por ordem suprema, passaria a funcionar? Ainda cabe reflexão quanto aos impactos que inevitavelmente afetarão outros setores da administração.

Diante da impossibilidade de aprofundamento, nessas poucas linhas, aponta-se como uma necessidade elementar, de fundo, a desincompatibilização ideológica. De nada adianta insistir em modelos que não se sustentam apenas por apego dogmático de ocupantes de cargos, muitas vezes abstraídos da realidade, cujo maior “mérito” é a ligação sindical ou partidária, que tomam decisões na base do achismo ou, pior, revestidos de verniz acadêmico, utilizam caríssimas estruturas governamentais na tentativa de validar duvidosas hipóteses acadêmicas sem resultados de natureza concreta, tão necessários em um setor destruído. Desperdício de tempo, recursos humanos e financeiros.

Há de se concluir, portanto: que o Supremo Tribunal Federal não se omitiu e reconheceu o estado de coisas inconstitucional de um sistema penitenciário falido e desumano, verdadeiro inferno dantesco; que a sociedade não deseja conforto ao presidiário, mas a oferta de salubridade e dignidade; que o mandamento supremo corre o risco de inexecução, quer por incapacidade gerencial, quer pelo impacto econômico que causa, aparentemente não sopesado nas decisões. Por outro lado, é claro que algo há de ser feito, com urgência. A solução definitiva para o problema reside na criação, desenvolvimento e execução de políticas públicas em sua forma científica, estruturada, o mais distante possível de ideologias que trouxeram nosso país à beira do abismo colossal.

Fabio Malina Losso, doutor em Direito Civil pela USP, é membro do Conselho da Escola de Políticas Públicas da Universidade de Chicago, onde é pesquisador-associado.
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