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 | Albari Rosa/Gazeta do Povo
| Foto: Albari Rosa/Gazeta do Povo

Lembro bem do professor que entrou na sala de aula segurando uma xícara de café com leite. Logo começou a falar com os alunos, discorrendo sobre diferentes áreas do conhecimento, sempre em torno do tema “xícara de café com leite”. Na conversa, passou pela história, pela geografia, pela química, pela física, pela meteorologia, pela matemática, pela biologia, pela literatura, pela economia e pelas artes. Sempre nos incentivando a refletir criticamente e a trocar ideias sobre a riqueza de informações que havia em torno daquela simples bebida. Como tarefa para casa, o mestre nos incentivava a buscar mais informações em livros, em que pudéssemos encontrar temas relacionados ao café com leite.

De forma natural, com simplicidade e alegria, aquele professor nos capacitava – sem que tomássemos total consciência disso à época – a fazer conexões. Ele estava, de fato, nos ensinando a raciocinar sistematicamente, interligando diferentes disciplinas para gerar uma perspectiva holística. Algo que poderíamos, depois, com certa facilidade, utilizar em qualquer outro tema.

Hoje se vive com pressa, pretexto da superficialidade, que se manifesta em todos os lugares

De lá para cá, muita coisa mudou na educação brasileira. Após o regime militar, as matérias passaram a ser chamadas “disciplinas” e o conjunto delas passou a ser denominado “grade” (termos bastante afetos ao pensamento militar de então). E cada disciplina tornou-se isolada, independente das demais, cabendo supostamente aos próprios alunos fazer as conexões. Na prática, porém, essas inter-relações deixaram de ser realizadas assim que cessou o estímulo dos professores. Diminuiu, igualmente, o diálogo em sala de aula: os professores passaram a discorrer sobre conteúdos estáticos para os alunos os aprenderem (ou decorarem), a fim de reproduzi-los nas provas. Implantou-se outro modelo: professores falando, alunos escutando e anotando. As gerações seguintes, consequentemente, perderam bastante da capacidade para o raciocínio sistêmico.

Com esse processo didático, a noção que restou do universo ficou fragmentada e simultânea. Não mais se questiona, porém, se há algum sentido mais amplo. Hoje se vive com pressa, pretexto da superficialidade, que se manifesta em todos os lugares. As notícias surgem e se autoconsomem. As imagens do mundo nos são familiares e nem sabemos por quê. Elas tapam o vazio dos imaginários ao se colocarem como a alteridade da humanidade. A perda do hábito de inter-relacionar temas, aliada ao ritmo acelerado, reduz a possibilidade de reflexão crítica.

Ora, hoje entendemos que cada evento do dia a dia precisa ser considerado como parte e reflexo de um todo, conforme a metáfora do holograma. É uma visão na qual o todo e as partes estão sinergicamente em inter-relações dinâmicas, constantes e, por vezes, paradoxais. Nas palavras de Edgar Morin, “não apenas cada parte do mundo faz cada vez mais parte do mundo, mas o mundo enquanto todo está cada vez mais presente em cada uma de suas partes. Isso se verifica não só para as cidades e os povos, mas também para os indivíduos. Da mesma forma que cada ponto do holograma contém a informação do todo de que faz parte, doravante cada indivíduo também recebe ou consome as informações e as substâncias vindas de todo o universo”.

A fim de recuperar essa necessária capacidade holística, é preciso que voltemos a cultivar o discernimento, a tolerância, o respeito, a alegria, a simplicidade, a paciência e a clareza nos encontros entre as ciências, as filosofias, as artes e as tradições espirituais. Tais inter-relações constituem cada vez mais uma necessidade na abordagem transdisciplinar em equipe, algo hoje fundamental na busca de soluções inovadoras para os problemas da sociedade, progressivamente mais complexos e interligados.

Para o progresso no ambiente atual, faz-se imprescindível interagir com diferentes disciplinas, com vistas a focar – com abertura e exame crítico – a complementariedade e a contradição ao considerar o relativo e o absoluto, a via quantitativa e a qualitativa, a serviço da vida, do homem e da evolução. Só assim teremos abordagens sistêmicas, mesmo de coisas simples, como de uma xícara de café com leite.

Marcos de Lacerda Pessoa, mestre, doutor e pós-doutor em Engenharia e membro do Centro de Letras do Paraná, é superintendente de Inovação da Copel.
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