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É válido elaborar uma lei para garantir a perpetuação de uma mesma moral? Tal questão anuncia-se no horizonte nacional quando o presidente da Câmara declara querer aprovar, em seu mandato, o Estatuto da Família. Elaborado pelo deputado Anderson Ferreira (PR-PE), o Estatuto da Família tem como objetivo defender a concepção tradicional de família – na sua definição, “núcleo social formado a partir da união entre um homem e uma mulher” – contra a “desconstrução do conceito de família” observada na atualidade.

A ideia de que a união conjugal entre homem e mulher é a única forma possível de família tem sido desconstruída desde 2002, quando o município de São Paulo determinou que seus cartórios registrassem contratos de união civil entre pessoas do mesmo sexo. Nacionalmente, o reconhecimento da união homoafetiva como entidade familiar deu-se em 2011, ano em que o STF legalizou o casamento entre pessoas do mesmo sexo.

A lei não pode ser usada para forçar os indivíduos a um determinado padrão moral

O casamento e seus objetivos sociais

O que é justo quando falamos de leis sobre casamento? Não temos como responder apenas recorrendo ao princípio da igualdade. Toda política sobre esse tema traça linhas divisórias, deixando de fora alguns tipos de relacionamento.

Leia o artigo de Sherif Girgis, Ryan Anderson e Robert George, autores de “What is Marriage? Man and woman: a defense”.

Observamos contemporaneamente uma mudança nos costumes e na moral: a entidade familiar deixou de ser um conceito exclusivo aos casais heterossexuais e passou a contemplar os homossexuais. Para Ferreira, contudo, tal mudança não é legítima. Daí sua tentativa de abafá-la mediante a lei. Na tentativa de suprimir as mudanças sociais recentes, Ferreira acredita que o Estado deve conduzir um “disciplinamento legal” dos arranjos familiares. Noutras palavras, quer se valer da lei para reverter as alterações nos costumes ocorridas nos últimos anos e impor uma moral única, segundo a qual a família só pode ser formada por um homem e uma mulher. A pressuposição de Ferreira é, pois, a de que a lei pode e deve ser usada para perpetuar o predomínio irrestrito de uma moral específica.

O Estatuto da Família vai contra a separação entre lei e moral, algo que, de acordo com eminentes filósofos, seria basilar para a liberdade individual. Um dos primeiros filósofos a sublinhar a importância de semelhante separação foi John Stuart Mill. Em seu opúsculo Sobre a liberdade, Mill alerta que a manutenção da liberdade individual requer a separação entre lei e moral. A lei não pode ser usada para forçar os indivíduos a um determinado padrão moral. O mero fato de uma conduta individual destoar da moral dominante não justifica seu cerceamento legal. Para Mill, uma conduta é passível de cerceamento legal apenas quando provoca dano aos demais.

A tese de Mill é reforçada por H.L.A. Hart, um dos juristas mais importantes do século 20. Em Law, liberty and morality, Hart repudia veementemente o que chama de moralismo legal, doutrina segundo a qual a função da lei seria garantir à força a reprodução inconteste de uma mesma moral. Segundo Hart e Mill, o que justifica a promulgação de uma lei é a ocorrência de dano. E, para os dois filósofos, a afetividade entre pessoas do mesmo sexo é uma conduta que não provoca dano a outrem.

Antes de elaborar seus projetos de lei, seria interessante que Ferreira lesse um pouco mais os grandes jurifilósofos, tais quais Mill e Hart. Para que a composição conjugal da família seja objeto de disciplinamento legal, o que se deve mostrar é que certos tipos de composições conjugais são danosas. Simplesmente alegar que a união homoafetiva desconstrói a concepção tradicional de família preferida pela maioria não basta para justificar a criação de uma nova lei.

Gustavo Dalaqua é doutorando em Filosofia pela USP. Toni Reis é pós-doutorando em Educação pela Unisinos.
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