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| Foto: Omar Haj Kadour/AFP

Há pouco tempo, o secretário de Estado, Rex Tillerson, anunciou que as tropas norte-americanas permanecerão na Síria, mesmo depois do fim da luta contra o Estado Islâmico. Se o governo mantiver a promessa, comprometerá o povo dos Estados Unidos em um conflito indefinido que pode resultar em um confronto direto de nossos soldados com as forças armadas sírias e seus aliados mais próximos, Irã e Rússia – e, durante o processo, infringirá praticamente todas as leis relevantes da questão.

Por mais repugnante que seja o regime de Bashar Assad, uma tentativa de impedir que reestabeleça o controle de seu território contando com a participação norte-americana, como sinaliza Tillerson, envolveria o país em uma nova hostilidade, que tem tudo para ser longa, sangrenta e ainda mais complicada. De fato, os ataques por terra e ar realizados nos últimos dias pela Turquia contra Afrin, enclave no norte da Síria mantido por milícias curdas que têm nosso apoio, demonstram a fragilidade da situação.

Não há dúvida de que qualquer ação tomada na Síria pode ter consequências desastrosas e fatais. Quase meio milhão de pessoas já morreram desde o início da guerra civil. Os horrores da violência ocorrida ali desafiam qualquer descrição, e o papel e a intenção das forças russas e iranianas que apoiam Assad continuam sendo uma grande preocupação.

A verdade é que, embora as consequências de trazer as tropas norte-americanas de volta após a derrota do Estado Islâmico na Síria não sejam claras, muito mais perigoso pode ser o resultado de sua permanência indefinida ali.

Não só colocaríamos em risco a vida de nossos soldados como também daríamos permissão para outros líderes mal-intencionados a fazer o mesmo

Sim, os Estados Unidos têm um papel importante na imputação da responsabilidade de Assad pelos crimes cometidos contra seu próprio povo e na prevenção de sua continuidade, mas o presidente não tem o poder de tomar a decisão unilateral de comprometer nossas tropas e parar Assad à força; tem de expor seu caso não só ao Congresso e ao povo, como à comunidade internacional. Envolver nossas fileiras em uma situação como essa não é só uma péssima política como ilegalidade perante a Constituição e as leis internacionais.

Comecemos pela Constituição. Os fundadores da nação criaram um sistema no qual o poder de declaração de guerra é do Congresso, e não do presidente. A Resolução sobre os Poderes de Guerra, de 1973, exige que ele notifique a casa pelo menos 48 horas antes do envolvimento de forças armadas em alguma hostilidade, na ausência de uma declaração de guerra. Deve, então, encerrar o uso das tropas em 60 dias, com 30 dias para retirada, a menos que o Congresso tenha declarado guerra ou autorizado o uso de força militar.

A equipe de política externa de Trump deixou bem claro que acha desnecessário o cumprimento dessas regras, e o novo compromisso anunciado por Tillerson mostra que está pronta para desrespeitá-las. Clara e lamentavelmente, o presidente está disposto a desprezar os limites constitucionais para exercer a autoridade de engajamento de suas tropas a seu bel-prazer.

O governo pode argumentar que os soldados já estão na Síria, ou seja, mantê-los lá não seria “introduzi-los”, mas isso seria um verdadeiro deboche com o estatuto. A administração Obama explicou, em 2015, que as autorizações para o uso de força militar com as quais o Congresso concordou, em 2001 e 2002, forneciam a base legal para as operações contra o Estado Islâmico porque visavam, do ponto de vista mais amplo, o terrorismo enquanto ameaça. É uma justificativa tênue, mas nada nos estatutos poderia tornar plausível a extensão da presença militar norte-americana na Síria após o enfraquecimento comprovado do EI.

Leia também: Eu escolho os curdos (artigo de John McCain, publicado em 26 de outubro de 2017)

Não somos os primeiros a levantar essas preocupações. Tim Kaine, senador democrata pela Virgínia, e Jeff Flake, republicano pelo Arizona, há anos se esforçam para chamar a atenção para a falta de autorização legal para as operações militares no Oriente Médio. E Bob Corker, do Tennessee, presidente da Comissão de Relações Exteriores do Senado, deixou bem claro em sessão recente que, se os EUA permanecerem na Síria para combater os representantes iranianos, “o fará sem nenhuma autorização para esse tipo de atividade”.

Como se a violação constitucional não fosse problemática por si só, o plano anunciado também enquadraria o país em violação direta das leis internacionais. As operações norte-americanas contra elementos do Estado Islâmico e da Al-Qaeda na Síria foram feitas em defesa própria e de seus aliados, principalmente o Iraque; essa foi a explicação dada na ONU para justificar as operações militares na Síria, oferecida pela embaixadora Samantha Power, em 23 de setembro de 2014 e reiterada em uma carta de Tillerson ao Congresso no fim de 2016.

Há quem critique esse uso de exceção de autodefesa como uma medida excessivamente ampla e imprecisa, mas, mesmo que o argumento tenha se mostrado plausível antes, o engajamento indefinido das tropas dos EUA na Síria não pode ser defendido com base semelhante.

A estabilização do território tomado do EI é, sem dúvida, essencial para garantir que a ameaça terrorista não volte a surgir, e ela deve ser considerada prioridade para os EUA, mas, uma vez que a ameaça do grupo diminuiu consideravelmente e o conflito voltou a ser uma briga pela recuperação do controle das terras mantidas pelos rebeldes – que, por sua vez, estão divididos em facções –, não é mais possível alegar que a missão seja de autodefesa. Se o presidente ordenar que suas tropas permaneçam em território sírio nessas circunstâncias, estará incitando-as a cometer uma violação explícita da Carta das Nações Unidas.

Leia também: Trump e o ataque à Síria (editorial de 8 de abril de 2017)

Com uma infringência tão óbvia das leis internacionais, nós não só colocaríamos em risco a vida de nossos soldados como também daríamos permissão para outros líderes mal-intencionados a fazer o mesmo. E estaríamos agindo assim quando a aprovação mundial em relação à liderança norte-americana está em queda livre: de 48%, há apenas um ano, para 30%. A estratégia abalaria significativamente, talvez irremediavelmente, nossa reputação de nação defensora de ações internacionais legais, conquistada a duras penas.

Há várias décadas, o Congresso vem cedendo sua autoridade em termos bélicos ao Executivo; se não agir agora, poderá perder o pouco da força que lhe resta. Tem obrigação de cumprir seus deveres constitucionais; nossos soldados – e suas famílias – merecem um debate público para esclarecimento do escopo exato de sua missão, principalmente se estamos pedindo que coloquem suas vidas em risco.

A Casa deve dizer ao presidente que ele não pode envolver nossas tropas em uma guerra ilegal na Síria. Permitir essa ação descaradamente ilegal representaria o fim de sua autoridade sobre a decisão de eclosão de guerra – e representaria prova inegável de que os EUA sob Trump não são mais defensores da ordem mundial, mas sim que estão prontos e dispostos a acabar com ela.

Cory A. Booker, senador democrata, é membro da Comissão de Relações Exteriores do Senado. Oona A. Hathaway é professora da Faculdade de Direito de Yale e autora de “The Internationalists”.
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