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 | Dan Lundberg/Wikimedia Commons
| Foto: Dan Lundberg/Wikimedia Commons

Eu passei os três dias das eleições presidenciais no Egito, no fim do mês passado, fechando caixas e carregando, com meu irmão, os últimos objetos que ainda ocupavam a casa onde moramos a vida inteira: um palacete de 22 cômodos que minha avó construiu no Cairo, em 1940, às margens do Nilo. Foi ali que minha mãe nasceu e viveu a vida toda. E eu também.

Minha avó, Esmat, sonhara com um lar que sobrevivesse às gerações e, quando se casou, trocou os presentes tradicionais dados nessa ocasião por dinheiro, que economizaria para construí-la. Primeiro, em 1938, comprou o terreno; depois, fez o muro de concreto e metal à sua volta. Não demorou muito, a casa começou a ser erguida.

Ela ocupa quase uma quadra inteira da ilha residencial de Zamalek, com vista ampla e desimpedida (pelo menos no começo) das plantações e do rio. Os jardins eram cercados por mangueiras; havia uma figueira e uma oliveira de frente uma para a outra, plantadas por causa da crença de que daria à casa uma vida mais longa.

Nos anos 20, o modernismo representava a imaginação de um Estado independente; nos 30, início do nacionalismo egípcio, minha avó, feminista determinada e com inclinações políticas, contratou Ali Labib Gabr, diretor da Faculdade de Arquitetura do Cairo e arquiteto pioneiro no Egito, para projetar a casa de acordo com suas instruções.

Nossa casa era muito cobiçada – não pelo valor arquitetônico, mas pela localização, considerada perfeita pelas construtoras

Ele combinou arcos largos e andares em vários níveis, portas majestosas com painéis de madeira e vidro que desapareciam nas paredes, janelões que levavam o jardim para dentro da casa e outras, menores, com modelos e configurações diferentes. Era o moderno com um pé no art déco, com a exceção de dois salões grandiosos que ganharam cornijas decoradas e outras minúcias no estilo Beaux-Arts, muito em voga na época. Cada detalhe foi cuidadosamente levado em consideração, incluindo os azulejos dos banheiros que faziam curvas, em vez de simplesmente se encontrarem nos cantos.

A casa foi fartamente documentada, e incluída no patrimônio histórico da cidade, o que significava que, legalmente, não poderia ser alterada ou demolida. Tornou-se um monumento no bairro e talvez a personagem mais marcante de nossas vidas.

Quando eu era pequena, sempre achei que a casa fosse nossa. Minha mãe, caçula de quatro irmãos, também foi a última a se casar e, quando chegou a hora, em vez de deixar minha avó, uma viúva de idade, sozinha, decidiu ficar. Assim, a casa foi formalmente dividida em duas e, com meu pai, ela voltou a ocupar a parte de trás do complexo, inclusive o quarto em que nasceu. E foi lá que continuou dormindo – inclusive sozinha, depois do divórcio, em 2001 – até finalmente se mudar, em 23 de março.

Passei a infância no andar superior com meus pais e meu irmão, e nós dois ocupávamos a casa como se ela fosse só nossa. Era um sobe e desce de dois em dois na escada dos fundos, brincávamos de esconde-esconde em todo lugar – aproveitando os espaços das lareiras e dos cômodos secretos do sótão, se espremendo dentro de um aparador e abrindo as portas do jardim toda tarde para brincar com a criançada da vizinhança. Tomamos conta do porão para “experimentos”; meu irmão tinha um verdadeiro minizoológico na cobertura, com gazelas, coelhos, pombas, galinhas-d’angola, pássaros myna e papagaios. Passamos horas e mais horas dando batidinhas nas paredes, no piso e nos degraus, em busca do som oco que revelasse a cavidade na qual, segundo nossa avó, estava escondida uma caixa cheia de tesouros.

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Foi só depois que ela morreu, em 1984, poucos anos depois da posse do presidente Hosni Mubarak, que acabaria ficando três décadas no poder, que fiquei sabendo que a casa nunca seria totalmente nossa: as leis de herança obedeciam à jurisprudência islâmica, e o filho homem de Esmat receberia um quinhão maior que o de minha mãe e o das outras duas irmãs. Não demorou para que os primos também se envolvessem.

Nessa época, outras mansões próximas foram vendidas e demolidas; a paisagem urbana à nossa volta mudou drasticamente. Arranha-céus substituíram jardins, dois ou três em um único terreno. Nossa casa era muito cobiçada – não pelo valor arquitetônico, mas pela localização, considerada perfeita pelas construtoras, por causa da proximidade do rio. Como não tínhamos condições de comprá-la, a melhor solução seria colocá-la nas mãos de alguém que a conservasse, tarefa que se tornou uma verdadeira missão para a minha mãe, que acabou jogando-a contra a própria família em um impasse que durou três décadas.

Quando eu tinha 20 e poucos anos, o país estava começando uma reforma econômica e eu começara a escrever, me mudei para o andar de baixo, que era da minha avó e, ao lado do meu irmão, assumi a causa de proteger a mansão. Incansáveis, fomos atrás de possíveis compradores que estivessem interessados em usá-la como residência, ou até transformá-la em centro cultural, biblioteca ou museu – e o interesse que surgia, quando surgia, era sempre estrangeiro. Os empresários e patronos da cultura egípcios pareciam mais interessados em prédios recém-construídos, subúrbios ou casas multimilionárias ultramodernas, mas não o centro da cidade histórica, não o patrimônio que já estava ali.

Durante 30 anos, a campainha do jardim tocou, com os corretores prometendo compradores “respeitáveis”. Nenhum acordo chegou a termo, e a impressão era a de que a casa ficaria no limbo para sempre. Escrevi sobre ela no meu romance de 2014: era a única personagem verdadeira no livro, e a única coisa na minha vida, e no bairro, que dava a impressão de não ter sido afetada pela revolução de 2011, já que nossas esperanças de que haveria mudanças reais após a primeira queda de Mubarak primeiro ganharam força, para logo em seguida serem destroçadas. A nossa casa era a última a ainda ser ocupada pelos proprietários originais, e todo mundo comentava que era a única coisa com que podiam contar que estaria ali para sempre.

O que poderia ter sido um fator de mudança, uma abertura política, tornou-se um fim

Entretanto, quando a usei na minha ficção, cantei o momento em que teríamos que deixá-la de vez.

Em 1.º de abril, no dia em que a reeleição do presidente Abdel-Fattah el-Sisi foi confirmada, entregamos a casa aos novos donos, que antes de adquiri-la ficaram namorando a propriedade de longe, durante dois anos. Minha mãe finalmente encontrara a compradora ideal, a mulher que, segundo ela, seria a segunda melhor guardiã não só da estrutura, mas de seu legado. Juntas, no último dia, entramos em todos os cômodos, e uma vez que os papéis foram assinados no jardim, voltei para dentro sozinha mais uma vez, para fechar todas as portas, janelas e venezianas. A seguir, saí pela porta principal, trancando-a atrás de mim.

Aqueles momentos finais da saída, como também os meses que os antecederam – enquanto repassamos quase 80 anos de história familiar, embalando e dando muita coisa – deram a impressão de ser um epílogo, o fim de uma era, tanto para a minha família como para o Egito moderno, independente desde 1922. A casa agora pertence a estrangeiros, e o país, mais conservador e repressivo do que nunca, está totalmente diferente do que eu achava que ia se tornar. As últimas eleições passaram por mim sem o menor reconhecimento, farsescas demais para serem levadas em consideração. O que poderia ter sido um fator de mudança, uma abertura política, tornou-se um fim.

O novo apartamento da minha mãe dá para o antigo jardim; da varanda dela é possível ver o que era meu. Os novos donos ainda não se mudaram, mas o caseiro e sua família ocupam o porão da nossa antiga casa, e passam os dias sentados nas cadeiras plásticas que deixamos para trás. Quando o sol está se pondo, as venezianas abertas deixam ver o quarto da infância do meu irmão; eu me esqueci de descê-las e as cortinas de musselina branca continuam na janela. Eu me sinto isolada de nossa casa, o prisma pelo qual vi a cidade minha vida inteira e através do qual imaginava o futuro do país.

Yasmine El Rashidi é autora de “The Battle for Egypt: Dispatches from the Revolution” e “Chronicle of a Last Summer: A Novel of Egypt”.
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