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Em surpreendente decisão por unanimidade, vereadores de Curitiba aprovaram um projeto de lei que proíbe o uso de veículos movidos por tração animal. Em resumo, isso significa o seguinte: carroça, só se for puxada pelos nossos parentes literalmente mais próximos: os Homo sapiens.

A decisão levanta um profundo paradoxo ético: vivemos a humanização do animal ou a animalização do humano? Com o nobre objetivo de evitar que carrinheiros abusem dos cavalos, a resolução, ao proibir o uso de carroças dentro da cidade, não deixa dúvidas a respeito do quanto o nosso dilema pode ser tremendamente significativo.

Entretanto, as perguntas mais importes a serem feitas neste momento são outras: a preocupação com os maus-tratos e, consequentemente, com a saúde dos animais implica a proibição do uso de todos os veículos com tração animal? Vale mesmo a pena transformar um problema acidental – a “desumana” maneira como os alguns animais vêm sendo tratado pelos seus proprietários – em um problema formal?

Criminalizar o uso de todos os animais para a suposta nobreza do nosso desenvolvimento não faz o menor sentido

Uma verdade inconveniente

Os equinos e bovinos, juntamente com lobos e cachorros, estão entre os primeiros animais domesticados. Durante as caçadas pré-históricas, os filhotes, que continuavam perto das mães assassinadas, eram recolhidos e criados em cativeiro, começando-se assim uma longa história de convivência (parasitária, é verdade) entre espécies.

Leia o artigo do juiz federal Anderson Furlan.

Acredito que a única resposta sensata para essas duas perguntas só poderá ser um categórico “não”.

Inúmeras famílias de Curitiba dependem do uso de animais para melhorar o transporte de cargas mais pesadas e, com isso, garantir trabalho digno e o sustento básico dos próprios filhos – na verdade, civilizações inteiras se desenvolveram justamente porque souberam utilizar da força, destreza, coragem, resistência, afetividade, companhia e até da inteligência dos animais. Animais são ótimos para trabalhar na lavoura, no transporte, excelentes na guerra e, acima de tudo, grandes companheiros.

De fato, e isso não poderia ser esquecido, animais não humanos não são simplesmente nossos escravos. Os animais devem formar conosco uma certa comunidade de parceira; em outras palavras, são companheiros na construção e aperfeiçoamento da nossa vida social, econômica e, acima de tudo, cultural. Nesse sentido, maus-tratos não podem ser justificados simplesmente por eles serem apenas animais e nós, os humanos, os seus donos.

O título de proprietário, no que diz respeito aos animais, impõe nossa capacidade de cuidado e responsabilidade. Ter responsabilidades com os animais é sinal da nossa própria humanidade. Com efeito, tratá-los como nossa propriedade não significa que tudo está permitido. Pelo contrário, o direito de utilizá-los implica o dever de cuidar muito bem deles, e é exatamente esse ponto que o projeto de lei aprovado não contempla.

Atualmente, a importante discussão sobre os direitos dos animais revela muito mais acerca de nós mesmos. Torna-se irrelevante saber se animais são naturalmente portadores de direitos. Não interessa saber se eles são ou não dignos dos mesmos direitos que os homens, visto que jamais seriam capazes de partilhar dos mesmos deveres. Por outro lado, o importante está em saber que maltratá-los não se justifica moral e legalmente. Em última instância, maltratá-los só revela o que há de pior em nós.

Não resta dúvida de que os maus-tratos com relação aos animais deveriam ser considerados crime. Mas criminalizar o uso de todos os animais para a suposta nobreza do nosso desenvolvimento obviamente não faz o menor sentido. O excesso dessa humanidade com relação aos animais, no fundo, caracteriza o forte indício de que ainda não superamos a nossa própria condição animal.

Francisco Razzo é mestre em Filosofia pela PUCSP.
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