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 | Tomaz Silva/Agência Brasil
| Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil

“Eles estão jogando o jogo deles.
Eles estão jogando de não jogar um jogo.
Se eu lhes mostrar que os vejo tal qual eles estão,
quebrarei as regras do seu jogo
e receberei a sua punição.
O que eu devo, pois, é jogar o jogo deles,
o jogo de não ver o jogo que eles jogam.”
(R. D. Laing)

No dia em que chegou ao Brasil pela primeira vez, John foi levado direto do Galeão para a casa de um amigo em São Conrado. Depois do almoço, na ampla varanda de um apartamento num prédio alto, de duas unidades por andar, foi apresentado à vista: outros edifícios tão ou mais imponentes, uma nesga da praia e um bom pedaço da Rocinha. Com ar surpreso, John quis saber a extensão e população da favela, e como viviam os moradores. Logo que ficou sozinho com seu amigo brasileiro mais próximo, perguntou, meio constrangido, “isso não incomoda vocês?”

Às vezes um olhar de fora vê e aponta a nudez do monarca, constrangendo os locais que aprenderam a não notá-la. Constrangimento driblado pelo amigo brasileiro com uma frase feita que, delicadamente, dizia ao gringo que a complexidade local não poderia ser compreendida por um noviço: “O Brasil não é para amadores”.

Como já constatava John, aprendemos também a ser calorosos, especialmente com visitantes estrangeiros como ele. As demonstrações de empatia, ao mesmo tempo que o agradavam, aumentavam seu estranhamento. Ele não entendia como gente tão simpática e amável parecia não ligar para as misérias e violências cotidianas no morro.

Os brasileiros dão mais valor às relações pessoais, familiares, privadas, que a normas universais da esfera pública

Dias depois, outro amigo brasileiro lhe falou do conceito de “cordialidade”, marca da identidade nativa. Os brasileiros são cordiais, para o bem e para o mal. Regidos pelo coração, pelas emoções, podem ser muito amistosos, mas também violentos. Dão mais valor às relações pessoais, familiares, privadas, que a normas universais da esfera pública. Daí o calor humano, a hospitalidade, abraços e beijos e, ao mesmo tempo, grandes mazelas nacionais, como apadrinhamento e clientelismo. E de onde vem isso tudo? Da herança portuguesa, explicou o amigo.

John logo constatou que, pelo menos entre os locais mais estudados, essa compreensão da brasilidade – originalmente descrita pelo historiador Sérgio Buarque de Holanda na década de 1930 – era repetida com a estabilidade e segurança de um mito unificador, daqueles que agregam fiéis ou patrícios. Na sua própria terra natal, ao norte, uma narrativa do mesmo tipo, mas com um conteúdo bem diferente, conta o pioneirismo, a bravura, a perseverança e o empreendedorismo da história e do espírito do povo que a habita.

As duas são narrativas generalizadoras e, portanto, em larga medida, idealizadas. Ambas explicam pessoas e sociedades para elas mesmas e as apresentam às demais. Mas, enquanto a primeira já embute o fracasso, a falha, a incapacidade de superar a si mesmo, a segunda, ao contrário, impele adiante, e em si mesma significa sucesso.

Lá e cá, correndo o risco de ser tratado como herege, há quem questione o mito nacional confrontando-o com evidências históricas e sociológicas, ainda que no Brasil seja mais difícil encontrar algum representante desse pequeno grupo.

Um primeiro conjunto de evidências que talvez devesse instilar dúvida em meio à certeza consensual diz respeito aos contrastes entre as sociedades brasileira e portuguesa, que sempre foram muito diferentes entre si, tanto em suas formas de organização e funcionamento quanto em relação a praticamente toda ordem de indicadores sociais e econômicos usados para comparar países. Não é curioso que o tal “espírito comum”, aqui tão marcante e fielmente reproduzido através dos séculos e gerações, produza sociedades tão diversas?

A principal instituição social e econômica do Brasil em metade dos seus cinco séculos de história foi o escravismo. Primeiro país das Américas a importar escravos da África e último a acabar com escravidão, o Brasil foi o campeão de escravismo da história moderna sob importantes aspectos, como número de escravos trazidos para cá – quase 6 milhões entre os séculos 16 e 19. Vista de longe, numa perspectiva panorâmica, a história brasileira revela a escravidão como uma caraterística dominante em termos quantitativos e fundadora em matéria de organização social e construção cultural.

Leia também:Briga de vira-latas (coluna de Carlos Ramalhete, publicada em 18 de maio de 2017)

O escravismo se caracteriza pela superexploração do trabalho, naturalização de constante violência impingida contra grande parte da população e divisão socioeconômica radical. Com pequenas elites privilegiadas e um grande contingente de pessoas excluídas de direitos e cidadania, tratados como inferiores, não merecedores dos bens materiais e imateriais que os superiores desfrutam e compartilham, e – forçados a trabalhar incessantemente para o ganho alheio – recorrentemente vistos como preguiçosos, pouco dados à labuta. Será que isso faz lembrar de alguma nação contemporânea?

O Brasil não é mais campeão de escravismo. O mundo mudou e, mesmo tardiamente, tivemos de nos alinhar a algumas exigências dos novos tempos. Mas estamos no primeiro lugar do ranking mundial de homicídios em números absolutos (foram 58 mil em 2015), com as vítimas se concentrando nas populações pobres e negras (segundo estudo do Ipea, o risco de um jovem preto ou pardo ser assassinado é 147% maior que para jovens não negros).

Também em matéria de desigualdade e trabalho barato, o Brasil se destaca. Segundo o índice Gini, do Banco Mundial, apesar de ter havido redução da desigualdade no país nas décadas anteriores, somos o 13.º mais desigual entre 152 ranqueados. E o salário mínimo é 25% do necessário para o sustento básico de uma família de quatro pessoas, na avaliação do Dieese.

O escravismo como sistema econômico e fator de formação da nacionalidade e os altos níveis atuais de violência e desigualdade – fatores que, no mínimo, sugerem relações de causa e efeito – são características brasileiras que não se aplicam a Portugal. Inclusive porque, como diz o sociólogo Jessé Souza, hoje provavelmente o mais destacado crítico do mito da cordialidade nacional, são as instituições e não uma espécie de essência cultural atemporal que formam e moldam as pessoas e sociedades.

Assistimos a mais uma reedição do fenômeno da conciliação entre os “moradores dos andares de cima”

Numa sociedade como a nossa, que adapta e atualiza a lógica violenta, segregacionista e superexploratória do escravismo, a cordialidade é menos uma norma de etiqueta ou uma essência cultural e mais uma estratégia eficaz de conservação de poder e recursos nas mãos dos poucos. Ela opera uma camuflagem dos maiores conflitos socioeconômicos e, em momentos de crise, azeita conciliações das elites que sempre despejam o ônus nos ombros da maioria despossuída.

Assistimos a mais uma reedição do fenômeno da conciliação entre os “moradores dos andares de cima”, objetivada no texto e no sentido das atuais reformas governistas. Resultado de um impeachment de constitucionalidade questionada, o governo Temer tem adotado uma agenda que renega o mandato eleitoral que poderia lhe prover legitimidade: aquele que emergiu das urnas em 2014. A PEC do Teto, a ampliação da terceirização e as reformas trabalhista e previdenciária desmontam boa parte dos já precários instrumentos de proteção social e distribuição de renda do país, deixando intocados privilégios que concentram riqueza, direitos e oportunidades nas mãos de grupos socioeconômicos e corporativos poderosos.

Quanto maiores a desigualdade e o abismo entre os mais ricos e poderosos e o resto da população, maior o incentivo para os de cima se conciliarem em torno de interesses comuns que claramente e radicalmente os diferenciam dos demais. Enquanto nos andares de baixo, ou em cima do morro, a norma ajuda a formar gente norteada por relações pessoais de simpatia ou antipatia, com pouca aptidão para se nortear pela compreensão de divisões, conflitos e interesses que se articulam “acima” da esfera dos indivíduos, famílias ou comunidades.

Dotado de uma mente observadora, reflexiva, de inspiração iluminista, John entendeu que uma ética que privilegia parentes, amigos, pares e compadres ao mesmo tempo que enfraquece os valores universalistas da esfera pública democrática não é um fantasma lusitano assombrando os trópicos. E o amigo que havia lhe dito que o Brasil não é para amadores acabou entendendo que, às vezes, o que nos impede de entender não é a complexidade das coisas, mas vivências e aprendizados cotidianos que nos cegam para o óbvio.

O escravismo é a instituição fundadora do Brasil e sua lógica fundamental tem conseguido se atualizar em formas concretas de organização social e econômica do país. É essa a herança a ser superada, junto com o mito que ajuda a conservá-la, do brasileiro cordial.

Flavio Lobo, jornalista, assessor e consultor de comunicação, é mestre em Comunicação e Semiótica. Vinicius Prates, doutor em Comunicação e Semiótica, é professor de Jornalismo da Universidade Paulista e da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
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