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A primeira vez que ouvi a expressão “cansaço dos materiais”, de um amigo engenheiro, me pareceu muito peculiar, uma vez que significa que pontes, cimento, prédios, ferros se cansam. Se eles, que são indestrutíveis, se cansam, que dirá nós.

Achei, com o tempo, que se tratava de uma expressão de rara elegância. Até os átomos ficam de saco cheio de viver na função de ser átomo. Uma ponte cansa de ser ponte, um prédio de ser prédio, uma viga de ferro de ser viga de ferro. Pareceu-me ser este cansaço indício de que exista um Deus. E que os materiais foram feitos também à sua imagem e semelhança. E que não haveria um Deus mais sincero que um Deus cansado do que criou.

Somos um mundo fadado ao cansaço, mas sem direito a ele. O imperativo do sucesso é a prova de que nosso mundo está condenado. O simples fato de que o normal, esperado e necessário, é o crescimento econômico eterno já nos devia fazer duvidar do que fazemos todo dia.

Pais babam quando bebês colocam os dedinhos na tela do iPhone 7 e sorriem. Como são inteligentes esses pequenos!

Você é uma daquelas pessoas que pensam ter resolvido esse problema só porque tem tempo de ir a pé para o trabalho? Ou come sem pressa de manhã porque esse hábito em nada vai alterar sua capacidade de consumo? Bem, se você for uma dessas pessoas, ou é rica ou não tem qualquer possibilidade de sobreviver (e, nesse caso, não estaria me lendo nesse exato instante, estaria passando fome em algum lugar), ou vive só com muito pouco e jamais deixará de ser só porque faz parte da cultura single (hoje em dia o marketing dá nomes em inglês para justificar seus custos, tipo “cozinhar em casa” virou “comida comfort”), ou seu pai paga para você não ter pressa de manhã e você fará duas pós-graduações, uma em Nova York e outra em Barcelona.

Não há saída dessa economia non-stop. Quer saber por que não há saída? É fácil descobrir. Venha comigo. Quem pode abrir mão de wi-fi, cultura mobile, AirBnB, aviões cada vez mais seguros, direitos civis cada vez mais definidos, hospitais cada vez mais equipados, exames laboratoriais cada vez mais precisos, Netflix, gente fácil pra fazer sexo sem encher o saco depois, bikes cada vez mais leves, crianças cada vez mais caras e da cidade de Gonçalves como paradigma de gente bacana, tolerante e cool (esse tipo de gente custa muito caro)?

Ninguém abrirá mão dessas coisas, e muitas outras – a lista é interminável e cansativa, então não vou insistir nela.

Nunca houve na Terra uma geração de jovens mais cansada e sem futuro. Claro que falam muito deles como estrelas high-tech. Uma mistura de high-tech com sensibilidade vegana. Pais babam quando bebês colocam os dedinhos na tela do iPhone 7 e sorriem. Como são inteligentes esses pequenos!

Do mesmo autor:Tolstói ou Dostoiévski (20 de março de 2017)

Do mesmo autor:Os idiotas do sucesso (9 de janeiro de 2017)

Ouço constantemente de jovens que eles são narcisistas, intolerantes com pessoas reais (e tolerantes com rúculas, baleias e crianças na África), ansiosos e arrogantes porque nós lhes legamos um mundo em chamas. Um mercado de trabalho incerto os acompanha há algum tempo. Alguns idiotas da tecnologia acham que o Chatbot fará um mundo melhor graças à sua brilhante inteligência artificial. O novo gozo é com o “algoritmo”, mas o que ele vai fazer mesmo é destruir empregos na velocidade da luz. Esses idiotas da tecnologia se julgam mais livres porque trabalham pelo WhatsApp em casa no domingo.

Mas como escapar dessa economia frenética, se o Waze e o Uber são formas de algoritmo, e se sem esses dois as pessoas bacanas não existem? E temos de criar algoritmos cada vez melhores e mais rápidos e mais precisos para termos mais gente superbacana.

Todos os que afirmam ser possível escapar desse frenesi da produção têm um neurônio a menos. Faça um teste e liste o que você considera essencial pra sua vida. Sem mentir, tá? Se pegar um celular na mão, desista de qualquer utopia, você já perdeu a partida porque esse seu celular cool, provavelmente, depende de salários baixos em algum elo da cadeia produtiva, do contrário ele seria ainda mais caro do que é.

A China venceu. Você compra roupa cool feita por mão de obra quase escrava sem culpa porque no Facebook xinga o Trump e acha o Haddad um grande estadista.

Luiz Felipe Pondé, escritor, filósofo e ensaísta, é doutor em Filosofia pela USP e professor do Departamento de Teologia da PUC-SP e da Faculdade de Comunicação da Faap.
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