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No fim de janeiro, cientistas da Universidade de Chicago ajustaram o famoso Relógio do Juízo Final em dois minutos para a meia-noite, horário que marcará o Armagedom. Embora não passe de um simbolismo pueril, a ação ocupou manchetes mundo afora. A justificativa fornecida e amplamente reproduzida aponta para a iminência do conflito nuclear entre Estados Unidos e Coreia do Norte. Lamentavelmente, não houve qualquer menção à rede Skynet ou à participação de Arnold Schwarzenegger.

Não é inédito o apelo midiático ao catastrofismo, sempre eficiente na alavancagem de vendas e indicadores de audiência. No entanto, tornou-se perceptível certa tensão rondando os velhos jornalões. Há, de fato, o temor generalizado de que Donald Trump ou Kim Jong-un possam, qualquer dia desses, acordar de mau humor e decidam dar cabo à existência humana. O pouco que se conhece sobre a Coreia do Norte, que é obscurecido pela escassez de informações, misticismo e desinformação, não se enquadra nas velhas fórmulas genéricas de estúdio. Dessa vez, tornou-se impraticável a adaptação da verdade ao conceito, resultando em análises especializadas que beiram a esquizofrenia. Vamos elucidar minimamente, quase que grosseiramente, a dinâmica geral dos processos políticos, econômicos e sociais que envolvem o tema.

Primeiramente, é imprescindível destacar alguns dos principais aspectos do desconhecido cotidiano norte-coreano. Com a censura estatal, a maior fonte de informações sobre o país consiste nos relatos de incontáveis fugitivos do país. Neles, o cenário descrito evidencia um país desolado, corrupto, violento e insalubre. Coerentes entre si e respaldadas por informações de inteligência, as narrativas apresentam uma assombrosa constante: a fome. Agricolamente restrito a 18% de áreas cultiváveis, além de seu rigoroso clima e do emprego de técnicas agrícolas rudimentares (como o uso de fezes humanas), o regime comunista coreano não apenas se provou incapaz de executar sua autossuficiência, mas também conduziu o país a um prolongado déficit na produção básica de alimentos. Hoje, o racionamento estatal fornece porções alimentícias diárias de 300 gramas por habitante, composta pela pobre mistura de arroz, farelo de milho e batata. São aproximadas 1.100 calorias por dia, 590 abaixo do mínimo estabelecido pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO), de 1.690 calorias. São dados que colocam a Coreia do Norte, de acordo com o Global Hunger Index, atrás de países como Malawi e Namíbia.

Embora o abastecimento agrícola tenha sido uma constante preocupação ao longo da curta história do país, houve um severo agravamento do problema após a queda do Muro de Berlim e o fim da União Soviética. Incapaz de se reestruturar sem o auxílio financeiro, alimentar, bélico e industrial bolchevique, a dinastia dos roliços governantes norte-coreanos conduziu sua população à inanição extrema, a milhares de mortes e profundas marcas em seus habitantes. Em um breve comparativo com seus vizinhos sul-coreanos, os nortistas são, em média, 7 centímetros mais baixos e têm uma expectativa de vida 12 anos menor.

Kim Jong-un não é suicida, nem ingênuo

Inevitavelmente, o cenário descrito acima suscita inúmeras questões: como o regime comunista persiste? Qual o propósito de Kim Jong-un ao estabelecer uma retórica belicosa com os EUA? Quais suas pretensões? Há realmente motivo para pânico? Guga Chacra algum dia penteará o cabelo?

Prioritariamente, a sobrevivência do comunismo coreano, após 1991, apenas foi possível através das vitais doações humanitárias que o país recebeu e ainda recebe, inclusive de seu irmão sulista. Sem a onipresença soviética e dependente da ajuda internacional, Kim Jong-Il, filho e sucessor do líder revolucionário Kim Il-Sung, na tentativa de remediar a situação, adotou a intensificação da coletivização campesina e o prolongamento unilateral das jornadas de trabalho. O resultado de tais políticas ficou conhecido como “Marcha Árdua”, eufemismo adotado para tratar do período entre 1994 e 1998, no qual os norte-coreanos enfrentaram sua mais severa crise de fome.

Aparentemente em estado terminal nos anos 90, o regime coreano ganhou sobrevida pelas mãos do Partido Comunista Chinês, o qual passou a fornecer auxílio em diversas áreas, principalmente alimentar, energética e financeira, além de intensificar relações comerciais bilaterais entre os dois países. É evidente, portanto, que a manutenção do comunismo coreano pós-URSS tornou-se umbilicalmente relacionada à atuação econômica e política de Pequim, que tem suas motivações evidenciadas sob o prisma do rearranjo político internacional pós-Guerra Fria. Sepultada a geopolítica bipolar, inúmeros processos e relações globais foram catalisados pelo surgimento de novos protagonistas e mercados. Nesse contexto, destacaram-se as ascensões de China, marcadamente econômica, e Rússia, herdeira do aparato militar e estrutural soviético. Quase que naturalmente, interesses russos e chineses confluíram para a expansão e consolidação de suas novas agendas. Surgia, então, um novo eixo geopolítico de evidentes pretensões hegemônicas e, consequentemente, antagônico ao histórico domínio internacional das democracias ocidentais. Tal cenário foi primorosamente elucidado por Olavo de Carvalho em seu debate com Aleksandr Dugin, ideólogo russo por trás de Vladimir Putin, do qual resultou a indispensável publicação Os EUA e a Nova Ordem Mundial.

Leia também: Três enganos sobre Kim (artigo de Demétrio Magnoli, publicado em 10 de setembro de 2017)

Carlos Ramalhete:As Coreias e a paz (4 de janeiro de 2018)

Em decorrência, as últimas duas décadas foram marcadas por incontáveis manobras desse novo bloco. Sem alarde, algumas das principais sustentações da hegemonia ocidental foram derrubadas ou abaladas. Enquanto políticas econômicas chinesas, como o protecionismo comercial e a manutenção artificial do câmbio, solaparam lentamente a tradicional indústria norte-americana – já vulnerabilizada pelo engodo do Nafta –, os russos construíram uma extensa rede geopolítica de aliados, influência e manipulação.

Contudo, Moscou e Pequim pouco conquistaram em seu quintal. A zona do Pacífico permanece, majoritariamente, alinhada e fiel a Washington. Coreia do Sul e Japão são os principais entraves. Os tímidos avanços na região motivaram, inclusive, ações inusitadas: embarcações chinesas criaram ilhas artificiais no Mar da China, expandindo assim a porção oceânica sob seu controle.

Assim, torna-se evidente que a manutenção do regime aliado norte-coreano exerce importância fundamental na consolidação e manutenção do bloco russo-chinês. Não só pela localização estratégica do país, mas também pelo mortal revés que representaria uma eventual reunificação da península, da qual emergiria uma potência nuclear pró-ocidente nos moldes sul-coreanos. Kim Jong-un tem plena consciência desse processo. Compreende sua importância. A caótica situação de seu país levou-o à conclusão do inevitável: qualquer outro período de crise fará dele o último líder da Coreia comunista. Ciente da fragilidade estrutural da nação e sua consequente incapacidade de reverter o quadro estabelecido, o ditador norte-coreano buscou soluções na política internacional. O belicismo retórico contra os Estados Unidos tem como único objetivo tirar proveito das pretensões de seus aliados, que permanecem assombrados por um eventual conflito na região.

Leia também: Uma chance para a paz (artigo de Jorge Fontoura, publicado em 15 de janeiro de 2018)

Não é preciso muito esforço para visualizar os absurdos e caricatos contornos da situação. Como um país assolado pela fome, incapaz de manter a regularidade no fornecimento de energia elétrica e gás encanado, pretende fazer frente à máquina de guerra americana? Qual o plano da cúpula militar comunista para manter seus combatentes minimamente nutridos, sem que tenham de almoçar seus coturnos?

Em outras palavras, o discurso belicista de Pyongyang nada mais é que uma desesperada tentativa de extorsão formulada a partir da eleição de Donald Trump. Contando com a histeria do Partido Democrata, seus tentáculos midiáticos e uma boa dose de desconhecimento, Kim Jong-un pouco teve de trabalhar na consolidação de sua narrativa espalhafatosa. Além disso, houve a implementação e consolidação de paradigmas soberanistas conservadores na retórica política da Casa Branca, que estabeleceu noções avessas à condescendência diplomática da gestão Clinton/Obama. Em pouco tempo, a relação com o governo norte-coreano passou a envolver respostas à altura, tweets, apelidos, botões nucleares e inúmeras novas sanções. Chineses e russos, inclusive, pressionados internacionalmente, tornaram-se signatários dessas novas sanções. Para inglês ver, claro. Na prática, não houve modificação substancial nas relações entre os três países.

É evidente, portanto, o pragmatismo de Putin e Xi Jinping na sustentação de Kim Jong-un. Pelo menos por ora. Tempo valioso para o obeso governante e sua burocracia articularem novas soluções para o famélico regime comunista. Kim Jong-un não é suicida, nem ingênuo. Suas apostas são arriscadas, altas, mas têm rendido bons resultados enquanto sua narrativa prevalece. Ironicamente, a ditadura norte-coreana configura real ameaça apenas para sua própria existência. Em tempo, o líder norte-coreano afirmou que se disporia a abandonar o arsenal atômico e negociar com os sul-coreanos caso haja garantias de segurança – leia-se o recuo americano na geopolítica da região, o que dificilmente ocorrerá. Tal gesto evidencia a eficácia parcial das sanções internacionais, demandando o reajuste do discurso comunista. O objetivo, nesse sentido, é fortalecer a narrativa de que o maior entrave à paz regional é o imperialismo americano, o grande e conveniente vilão nos mais variados países do globo. Todavia, a disposição do tabuleiro político permanece quase a mesma. Da incerta disputa, há pelo menos uma certeza: não testemunharemos o soar de trombetas coreanas no apocalipse. Podem me cobrar.

Marcos Paulo Candeloro é cientista político e professor de Ciências Humanas.
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