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Nesta quarta-feira, teve o seu desfecho o julgamento do impeachment da presidente Dilma Rousseff, no Senado Federal, um dos capítulos mais importantes e eventualmente perigosos da nossa recente história democrática. Naturalmente, o tema rendeu e tem rendido, de ambos os lados, posicionamentos peremptórios e apaixonados, e, por isso mesmo, despidos de reflexões minimamente aprofundadas ou racionais.

Muitos, por exemplo, apresentaram e apresentam como razões ao impedimento a atual crise econômica, as graves denúncias de corrupção que atingem o Partido dos Trabalhadores e, não raro, a insatisfação popular com o segundo mandato de Dilma. No entanto, nada disso pode servir de base ao impeachment, cujo processo deve se ater, exclusivamente, à prática de crime de responsabilidade pela própria presidente.

Cientes disso, os senadores, evidentemente, passaram a incorporar a seus discursos referências a supostos crimes de responsabilidade praticados pela presidente (as chamadas “pedaladas fiscais”), não obstante todo o contexto demonstre que poucos deles estão efetivamente preocupados com esse requisito: na condição de oposição, o que lhes interessa, como costuma ocorrer quando envolvidos interesses políticos, é a deposição de seus adversários e a tomada do poder; para o bem ou para o mal, é ilusório imaginar alguma coerência quando se trata desse jogo.

Do lado oposto, em que havia o interesse em se manter no poder, afirmou-se que o impeachment era, na verdade, uma conspiração oposicionista e, de qualquer forma, não teria sido praticado, com as “pedaladas”, qualquer crime de responsabilidade. Daí a afirmação de que este impeachment seria, na realidade, um “golpe”. Um golpe sobremodo diferente dos golpes militares, tão comuns em nossa história recente, mas ainda assim um golpe: um golpe parlamentar ou um golpe “branco”.

Não houve golpe, mas isso não significa que a decisão seja juridicamente acertada e isenta de críticas

Quero, neste texto, analisar a viabilidade desta atribuição de significado ao impeachment, deixando de lado meu posicionamento pessoal quanto ao seu mérito. Afinal de contas, o impeachment de Dilma Rousseff é um golpe? Qualquer resposta a esta pergunta pressupõe um esclarecimento inicial: o que se quer dizer quando se fala em “golpe”? Prontamente, respondo: uso a palavra “golpe”, aqui, para me referir à ideia de ruptura, rompimento, quebra da ordem institucional.

O impeachment encontra previsão constitucional (artigo 86 da Constituição) e, como vimos, para se concretizar, exige a verificação da prática de crime de responsabilidade pelo chefe do Poder Executivo. Segundo os dilmistas, isso não teria ocorrido; de acordo com seus adversários, as “pedaladas” configurariam tal espécie de crime. E, de fato, há argumentos para ambos os lados, mesmo porque qualquer resposta segura à questão não dispensa estudos aprofundados de direito financeiro.

De qualquer modo, a Constituição estabelece, em seu artigo 52, I, que cabe exclusivamente ao Senado Federal o juízo de valor a respeito da prática de crimes de responsabilidade pelo presidente da República. O Senado tem a palavra final, aqui, não cabendo recursos a quem quer que seja. Tem-se, em outras palavras, situação em que o próprio sistema jurídico não só admite a possibilidade do impedimento do chefe do Executivo como atribui essa decisão ao Poder Legislativo – ou seja, a um juízo que não deixa de ter sua natureza política. É que, embora a decisão efetivamente tenha de se pautar por um critério jurídico (a saber, a configuração ou não de crime de responsabilidade), não cabe senão ao Senado aferir a observância de tal critério, sem, no entanto, ser-lhe exigido o rigor argumentativo de uma decisão judicial.

Guardada essa importante diferença, a situação não deixa de ter alguma semelhança com várias outras vivenciadas por nosso sistema jurídico, nas quais se atribui a um órgão ou conjunto de pessoas determinada responsabilidade decisória, isto é, determinado poder de dizer o que se adequa e o que não se adequa ao sistema – nosso sistema, como qualquer outro, aliás, é constituído e mantido, essencialmente, por relações de poder.

É o caso, por exemplo, do poder conferido a um grupo de juízes para decidirem, em última instância, sobre a ocorrência ou não de um dado crime e sobre a sua respectiva imputação a uma dada pessoa; ou, então, sobre a legitimidade constitucional das pesquisas com células-tronco. Outro exemplo, muito mais assemelhado ao julgamento do impedimento, é o poder atribuído ao júri popular para decidir casos de crimes dolosos contra a vida. Em nenhum desses casos, não obstante a necessidade de fundamentação mais ou menos juridicamente rigorosa, há a garantia de uma decisão adequada ao sistema (aliás, o próprio conceito de adequação ao sistema pode ser fluido), mas tão somente a atribuição de um poder de decidir. Em regra, no fim das contas, a decisão será definitiva, independentemente de quaisquer críticas que porventura se façam necessárias: os juízes ou o júri podem, de fato, equivocar-se em um juízo condenatório ou absolutório, e os vários inocentes presos e culpados soltos servem para demonstrá-lo. Da mesma forma, uma decisão tomada pelo Supremo Tribunal Federal a respeito de células-tronco não constitui, só por isso, a opção mais aceitável ou adequada. E, no entanto, todos esses casos, incluídos os inevitáveis equívocos decisórios, integram a ordem do sistema.

Como não é possível que o sistema prescreva todas as hipóteses e possibilidades de aplicação de suas regras, e por não haver nenhum plano abstrato ou absoluto de onde possamos retirar as respostas ou a verdade dos problemas jurídicos (por exemplo: “as ‘pedaladas fiscais’ configuram crime de responsabilidade?”), haverá, fatalmente, equívocos institucionalizados, e cabe a nós, enquanto comunidade e enquanto academia, criticar, por meio de argumentos, as decisões que se mostrarem juridicamente equivocadas.

No caso do impeachment, o próprio sistema optou por possibilitar um julgamento também político e, por isso, despido do rigor metodológico que, somente em tese, baseia toda e qualquer decisão judicial. E, efetivamente, isso gera um problema quanto ao controle da racionalidade da decisão. Mais ainda: o julgamento recente passa aos próximos presidentes uma mensagem muito clara, e nada confortante: tenham, a qualquer custo, o apoio da maioria do Congresso e, principalmente, do presidente da Câmara dos Deputados, caso contrário...

É verdade que há, aqui, a repugnância da conspiração iniciada por integrantes da própria base governista, somada à patética reação de uma oposição que, desde sempre, mostrou-se inconformada com o resultado das urnas e viu no impeachment o meio institucional adequado para chegar, de algum modo, ao poder. Mas, deixadas as preferências políticas de lado, não é possível se referir a isso como uma ruptura, nem mesmo branda, da ordem institucional: o próprio sistema autoriza que assim seja.

Por isso mesmo, o impeachment de Dilma não é um golpe. O que não significa, evidentemente, que a decisão tomada seja juridicamente acertada e não mereça ser alvo de críticas, tanto da academia como dos cidadãos. Negar que se trata de um golpe não implica na resignação intelectual à palavra do Senado.

André Felipe Portugal, advogado, é mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Coimbra (Portugal).
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