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“As almas não são punidas. Os que se arrependem obtêm a absolvição divina e se juntam aos que O contemplam, mas os impenitentes que não podem ser absolvidos desaparecem. Não há inferno; há o desaparecimento de almas pecadoras.” As frases atribuídas a Francisco no La Repubblica não foram gravadas ou anotadas. O fundador do jornal, Eugenio Scalfari, 94 anos, ateu, reconstruiu-as de memória após encontro privado com o papa. Tudo indica que são fiéis, talvez até o trecho “não há inferno”, diretamente contestado pelo Vaticano. Francisco não falou algo realmente novo, mas inclinou a doutrina da Igreja num rumo adequado aos desafios contemporâneos.

O Catecismo da Igreja Católica, publicado em 1992, assegura que, “imediatamente após a morte, as almas dos mortos em pecado mortal descem ao inferno”. O inferno, esclarece o texto, é “fogo eterno”. A interpretação tradicional da doutrina apresenta dois problemas dilacerantes. De um lado, a queda de todos os pecadores capitais ao inferno implica uma derrota da obra divina – e, portanto, de Deus. De outro, a ideia da punição corporal eterna converte o Deus misericordioso num torturador sádico. Há tempo, a Igreja busca saídas para essas armadilhas.

Adúlteras penduradas pelo cabelo sobre lama fervente, assassinos lançados em covas repletas de répteis venenosos, idólatras arremessados do alto de penhascos, caluniadores mastigando as próprias línguas, infiéis assados no fogo perene – a iconografia cristã do inferno não abre frestas à exegese. Contudo, bem antes de Francisco, surgiu uma reinterpretação do infindável sofrimento físico como metáfora da dor espiritual experimentada pelas almas separadas de Deus. Na sua evolução, o antiliteralismo conduziu à noção, expressa pelo papa, da instantânea aniquilação das almas. O fogo é eterno; a alma pecadora é fugaz: evapora para sempre.

“A vida do crente transforma-se quando ele pensa que nem tudo fica perdido com a morte”, escreveu Jacques Le Goff

O revisionismo extirpa o inferno do inferno sem solucionar o problema de fundo: a perda definitiva de parte da obra divina. A resposta a isso encontra-se na expansão do conceito de purgatório. A ideia muito antiga de um fogo purificador transitório, explicou o medievalista Jacques Le Goff em O nascimento do purgatório, sedimentou-se como dogma apenas no Concílio de Lyon (1245). Na prática, o resultado da decisão conciliar foi o estímulo às orações pelos mortos e à compra de indulgências, meios de intercessão em favor das almas capturadas na instância intermediária.

O purgatório, um lugar “inventado”, ausente das Escrituras, o “terceiro lugar”, como Lutero o classificou derrisoriamente, desempenhou funções cruciais para a Igreja: afinal, “a vida do crente transforma-se quando ele pensa que nem tudo fica perdido com a morte”, escreveu Le Goff. O purgatório do concílio medieval era uma paragem geográfica concreta, não um mero estado da alma. Mas, para além do figurativismo primitivo medieval, a incorporação ao dogma da possibilidade de penitência e salvação após a morte rompe um dique teológico. Se, afinal, alguns pecadores podem se redimir no outro mundo, por que a mesma via não estaria disponível a todos?

Platão viu no castigo uma benesse dos deuses. Na Alexandria do início da era cristã, Clemente (circa 150-215) e Orígenes (circa 184-253) extraíram disso uma conexão entre punição e educação. O castigo divino serviria para purificar e salvar. “Deus não exerce vingança, pois a vingança é pagar o mal com o mal”, de acordo com o primeiro. Já o segundo deu um passo além, afirmando que todos os seres humanos, mesmo os justos, devem passar pela experiência do fogo, porque inexiste homem absolutamente puro. O pensamento dos dois “fundadores do purgatório” inspirou a escola teológica universalista que, nascida no século 19, contesta a noção de inferno.

Leia também: Cinco anos de Francisco: aplausos, críticas e perplexidades (artigo de Robert Rautmann, publicado em 12 de março de 2018)

Leia também: A magia do papado (artigo de Carlos Alberto Di Franco, publicado em 31 de dezembro de 2017)

Os universalistas, exegetas protestantes, invocam passagens esparsas do Novo Testamento para revisar a doutrina católica, estendendo o privilégio do purgatório aos infiéis. Nas interpretações deles, o inferno é reduzido a um purgatório geral que, no fim, abriria o portal do céu mesmo aos piores e mais descrentes pecadores. Por essa via heterodoxa, toda a obra de Deus se salvaria.

Não é fácil harmonizar as ideias dos universalistas com o conjunto do texto bíblico, nem com o catecismo oficial da Igreja. Francisco pode ter dito que “não há inferno” apenas para negar a ideia petrificada de punição eterna das almas – ou, no limite, e desafiando suas próprias homilias, pode ter oferecido uma chancela informal à exegese universalista. De um jeito ou de outro, o papa reposicionou a Igreja na paisagem de sua própria história e no cenário da concorrência entre religiões.

As gráficas torturas da Santa Inquisição replicam cenas dos suplícios do inferno. O Deus que não tortura serve como condenação da Inquisição medieval, uma chaga aberta na história da Igreja, e das perseguições inquisitoriais do fundamentalismo islâmico atual. As correntes neopentecostais avançam sobre o rebanho católico prometendo a salvação, a felicidade e a prosperidade no mundo terreno. O Deus que não pune serve como réplica à pregação neopentecostal “pare de sofrer”. Francisco, o crente, fala por meio de Scalfari, o descrente.

Demétrio Magnoli é socíólogo.
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